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Não há dúvida de que vivemos numa época de grande crise social, política e económica de contornos internacionais, que tem sérias implicações para elos “fracos” do sul da Europa. Houve outras grandes crises em anos recentes, por várias vezes internacionais, e talvez cíclicas, ou exclusivamente nacionais. Em relação a todas elas já se escreveu certamente muito. Mas se existe uma diferença na crise que vivemos neste século XXI, é a dificuldade de a descrever com os termos do século passado. Hoje existem muitas crises simultâneas, que não se devem a causas localizadas e controladas geograficamente; crises que interagem umas com as outras e com efeitos semelhantes aos da tempestade que rebentou na Europa devido ao simples bater de asas de uma borboleta na Ásia. De facto, a realidade perdeu muita da sua materialidade e os fenómenos de crise surgem da interacção de culturas, com contextos sociais, económicos e políticos; as crises são agora numerosas e simultâneas; são uma tempestade de crises, que se afigura incontrolável e permite falar de uma crise de crises que poderá levar a um novo colonialismo. Se há dez anos ainda era possível descrever uma crise e talvez definir procedimentos de emergência, agora é extremamente difícil interpretar a complexidade do fenómeno, quando temos de enfrentar as consequências, sem controlar as causas. As ferramentas da crítica dos séculos XIX e XX já não se adaptam às condições do século XXI.

Nesta conjuntura delicada, em que é difícil ver se há uma mudança a longo prazo nas condições geopolíticas mundiais das relações económicas e políticas entre Este e Oeste, Norte e Sul, o debate sobre a arquitectura e a cidade ganha necessariamente grande relevo. Em primeiro lugar, porque grande parte da economia, pelo menos no meus país, a Grécia, está profundamente enraizada na construção, sendo a habitação um valor fundamental da cultura. A segunda, e talvez mais importante, razão é que, em última análise, a casa estava ligada – no meu país e também em Portugal – à identidade do lugar e à tradição, tanto nas cidades como nas aldeias, revelando um relacionamento com o lugar que excedia as características cosmopolitas e se baseava no valor da economia, num sentido mais profundo, quase filosófico. É de grande importância que em Portugal e na Grécia, países do mar e da navegação, a arquitectura dos últimos 50 anos, pelo menos, tenha reclamado o equilíbrio entre as formas internacionais da modernidade e do lugar, mantendo-se distante do internacionalismo radical e da globalização.1

Os efeitos da tempestade são sempre destrutivos para as actividades produtivas, para as pessoas e para todos os tipos de construções. Na presente crise, podemos não saber como e quando vamos resolver os fenómenos, mas estamos dispostos a ser vigilantes e optimistas, isto é, a estar atentos e prontos para voltar a ter o mundo nas mãos, como os capitães aprenderam nos seus navios. Mas não sabemos bem o que se vai seguir, porque a crise é o resultado de crises que vêm de outros lados, e os seus pontos de partida já não são localizáveis. Nesta difícil atmosfera, o mais importante é mobilizar regras de sobrevivência e encontrar a medida certa de autonomia para coexistir com a globalização.

Como primeira orientação, que não diz só respeito à cidade ou à arquitectura, necessitamos da consciência crítica de sujeitos sociais que viveram os verdadeiros desastres – enormes terramotos, tsunamis e ditaduras –, para fazer frente às tempestades globais e aos desastres digitais. É esse o estado de consciência que acrescenta maturidade resignada no dia-a-dia e contenção criativa em qualquer nova construção. Tendo como ponto de partida esse estado de consciência, a segunda orientação impõe uma introspecção crítica sobre a arquitectura e a cidade, que pode mitigar os efeitos do individualismo e defender o bem geral, a dimensão social de construir e habitar. Em certa medida, isto significa que a iniciativa privada, independentemente da sua força, deveria contribuir substancialmente para dar uma nova forma ao ambiente colectivo, social, cultural e construído. Sob este ponto de vista, a crise, enquanto crise de crises, pode acabar por ter, para além das consequências negativas, alguns efeitos positivos e de longo alcance na sociedade, que terá necessariamente de se manter unida.

 

 

Pode a arquitectura (grega) beneficiar da crise?

A arquitectura está associada à economia! Este facto óbvio poderia perturbar, há alguns anos, as visões de jovens arquitectos e estudantes de arquitectura, e de uma parte significativa dos seus professores, que viam o arquitecto como criador, independentemente de parâmetros sociais ou económicos. O culto do sujeito criador, o brilho do arquitecto-estrela e o menosprezo pelo cliente comum, que apenas pretende satisfazer as suas necessidades e por menos dinheiro, são conceitos que crescem facilmente em tempos de prosperidade e dinheiro fácil. Passámos por esse tipo de prosperidade na Grécia no final do século XX e início do século XXI, está claro, tal como já vivemos grandes crises no passado, nas décadas de 1930 e de 1970, por exemplo. Mas para lá das óbvias consequências negativas, as crises sempre tiveram um lado positivo que também devemos ter em linha de conta.

Durante a crise do período entreguerras, que atingiu o seu pico em 1929 e foi simultaneamente uma crise económica, social e política, aprendemos o valor do desenho funcional, da construção racional, da simplicidade dos materiais, do estilo despretensioso. Na Grécia, em particular, a crise esteve ligada a um desastre nacional que trouxe 1 200 000 refugiados da Ásia Menor, em 1922, e levou à bancarrota o estado moderno em 1932. A arquitectura aprendeu a reduzir drasticamente as necessidades espaciais, a responder idealmente às necessidades mínimas de mais pessoas com menores custos e, pela mesma razão, a reduzir decorações supérfluas, fazendo uso dos novos materiais industriais e desenvolvendo a estandardização. O objectivo do arquitecto virou-se para o interesse colectivo, a organização funcional das cidades e a dimensão social da habitação. A grande crise dos anos entre as duas guerras é anterior à maturação de ideias que conduziu à arquitectura moderna e à procura radical e, simultaneamente, optimista de um mundo novo no que diz respeito à ideologia, à política, à estética e à construção.

De modo semelhante, mas noutras condições, a passagem dos anos 1960 aos anos 1970 ficou associada internacionalmente a uma grande contestação social e política, à procura de identidade ideológica e à crise do petróleo, enquanto na Grécia (e em Portugal claro) prevalecia a ditadura (militar, na Grécia). Na época, reconhecíamos a importância da arquitectura vernacular e o valor libertador do regresso às origens, em termos políticos e de auto-consciência. Interpretávamos criticamente a história e dávamos sentido à requalificação e reutilização de edifícios antigos. Ao mesmo tempo descobrimos o design bioclimático, voltando-nos para fontes renováveis de energia, em primeiro lugar e principalmente para o sol, e ganhámos a riqueza da reflexão e investigação teórica que abre novos caminhos à criação arquitectónica. Da crise geral nasceu um arquitecto que pensa numa sociedade respeitadora do passado e do ambiente.

Séculos de pobreza deixaram como herança aos nossos tempos um enorme património arquitectónico e um ambiente natural que tentámos consumir à pressa durante os últimos 20 anos, bem como uma moderação que ignorámos arrogantemente em nome do luxo, do espectáculo e do lucro rápido. Podemos ser hoje acusados pelo norte da Europa de ser lixo, mas não devemos esquecer-nos que, na Grécia, construímos também muito lixo arquitectónico durante o período de prosperidade acrítica.2 A crise profunda está a provocar, necessariamente, o abrandamento da construção apressada, contribuindo indirectamente para a contenção. Deve haver, mesmo agora, a consciência de que a arquitectura é uma acumulação de trabalho e riqueza social que pertence ao longo termo. Não deve ser consumida facilmente com voracidade e pressa nas rápidas reviravoltas da economia de mercado. A arquitectura faz parte de uma economia de espaço e de tempo, uma economia da cultura, e deve expressar uma visão e uma filosofia de vida.

Neste sentido, uma grande crise indesejável poderá ter alguns efeitos benéficos na qualidade do ambiente arquitectónico. Dar-nos-á tempo para pensar, para ler e para entrar em contacto directo com o nosso mundo. Forçar-nos-á a reavaliar o valor da
medida certa e a importância do suficiente e necessário, da simplicidade, de tudo aquilo que adquire mais significado quando o uso diário lhe “inscreve” a passagem do tempo. Reduzirá o nosso lixo, literal e figurativamente. Ajudar-nos-á a pensar duas vezes no valor da escala, dos materiais e dos equipamentos para reduzir custos e, como tal, fará com que nos afastemos do norte “rico”, dando novo sentido ao nosso orgulho. Neste sentido, podemos construir uma nova criatividade. Não sei qual vai ser o desfecho desta crise de crises no sul da Europa, quanto tempo vai durar e que ruínas nos vai deixar; também não posso prever o rumo da arquitectura nos anos seguintes, quer na prática quer na teoria, mas julgo, no final, que a arquitectura grega mudará e ficará a ganhar.

 

 

A crise de Atenas é a maior motivação para a sua regeneração radical

A crise na construção reduziu dramaticamente a actividade dos arquitectos – principalmente os jovens – e fê-los concentrarem-se na criatividade expressa em eventos públicos, em trabalhos de investigação sobre problemas comuns e em exposições visionárias. Estas actividades podem encontrar-se principalmente em Atenas, associadas à grande crise urbana que todos reconhecemos no centro e nos subúrbios da capital. Esta crise tem duas faces. Durante um período de cerca de 25 anos de crescimento económico, a cidade estendeu-se difusamente em todas as direcções (sprawl), criando, na região, muitos centros secundários, com consequências negativas para o ambiente natural e as culturas rurais. Inversamente, o centro de Atenas, que fora sinónimo do poder político, do comércio, da história e da cultura, sofreu um declínio crescente, que atingiu um pico crítico nos últimos anos.

Num segundo sentido, em particular, o centro passou por um declínio acentuado da actividade económica e comercial, o abandono de um grande número de edifícios, muitos dos quais classificados, e a retirada de usos simbólicos da centralidade urbana, como os ministérios e as autoridades judiciais. O “vazio” difuso que já ali se instalara no início da crise económica, foi exacerbado por manifestações frequentes de violência política e criou um campo de atracção para grupos sociais marginais, sem-abrigo, imigrantes e toxicodependentes, formando clusters de acesso limitado e delinquência. A crise, que é agora em parte internacional, em parte local, encontrou um rosto verdadeiro no centro simbólico de Atenas, onde se voltou ansiosamente para a atenção da opinião pública e do Estado, bem como dos grupos sociais politicamente activos e, claro está, dos arquitectos, urbanistas e outros especialistas.

A mais recente crise financeira encontrou-se em Atenas com a já longa crise urbana, que se expande continuamente e afecta agora a cidade inteira. São ambas importantes e correm em paralelo ainda que sejam distintas e independentes. O encontro destas duas crises estimulou o interesse do Estado e dos cidadãos pelo centro da cidade, pondo em destaque a necessidade de estudos e propostas que dêem resposta ao fenómeno da metrópole ao longo do tempo. Ao analisarem o problema do centro da cidade, os estudos colocaram de uma forma nova a questão do espaço urbano e da centralidade, elaborando propostas que vão além dos limites das práticas urbanas conhecidas. Um novo Plano Director, proposto no passado mês de Julho, coloca sobre uma nova base a totalidade da capital, revertendo a explosão numa espécie de implosão que volta a conferir interesse ao centro económico, político, cultural e histórico, enquanto o tenta ligar à frente de mar. Simultaneamente, os subúrbios nas colinas e o ambiente natural são redefinidos em nítido contraste com o interesse na propriedade privada, e são especificados novos termos para o desenvolvimento ecológico, as mudanças climáticas, as restrições de construção, a circulação amiga do homem e a conversão de auto-estradas em boulevards. No coração da cidade há uma nova proposta de planeamento urbano que revê a velha relação entre trânsito automóvel e pedonal nas principais avenidas e procura requalificar uma vasta área de espaço público em simultâneo com o pôr em prática a ideia do direito à cidade para todos os cidadãos.

Ninguém pode prever o grau de implementação destas propostas numa situação económica e política tão crítica, mas o seu contributo para o pensamento crítico sobre a metrópole contemporânea é um grande contributo para o próprio futuro da capital. Se é possível pensar a cidade de uma outra forma, isso significa que a cidade está a mudar porque o modo de percepção está a mudar. Mais cedo ou mais tarde, também a cultura material mudará. Neste sentido, a crise de Atenas é a maior motivação para a reconstrução radical. Estudantes de arquitectura, arquitectos jovens ou menos jovens estão a trabalhar nisto no seu dia-a-dia. Da sombra da crise está a emergir o optimismo da crítica reflexiva e essa é a outra face e, talvez, o único caminho para a modernidade reflexiva.

A procura militante do pensamento crítico, que tem como fim o interesse público, exige que as pessoas que estão no navio à deriva na tempestade possam conduzi-lo a bom porto, apesar da tempestade, sem se submergirem eles próprios de forma a vingar a tempestade, Deus que a enviou e aqueles que, contra, sempre conspirarão ou pior ainda, os que se comportam como os piratas nas histórias do Astérix. A consciência crítica desse grande avanço é o principal desafio perante a crise do espaço de lixo e o lixo da crise, quer ele luza como ouro ou se torne cinzento como o carbono. O mesmo se aplica à arquitectura e à cidade. Tudo isto exige que se crie e pense para além do pensamento metropolitano, numa globalização que dê mais significado ao valor da diferença do que à diferença de valor. |

 

Tradução: João Carvalhais

 


1 Ver a arquitectura do século XX em Portugal e na Grécia nos dois catálogos das exposições paralelas no Museu Alemão de Arquitectura, em Frankfurt: Annete Becker; Ana Tostões; Wilfried Wang (eds.). Portugal: Architektur im 20. Jahrhundert. MÜnchen: Prestel, 1997; e Savas Contaratos; Wilfried Wang (eds.). Greece: 20th century architecture. Munich : Prestel, 1999. 

2 Conheço certamente “Junkspace” de Rem Koolhaas (October. Vol. 100 (Spring 2002), p.175-190) e uma grande parte do lixo a que me refiro é o mesmo a que ele se refere, mas também me refiro, e talvez, ainda mais, à propriedade do supérfluo, que existe independentemente, e que inclui até uma arquitectura própria como um exemplo típico de junkspace. Neste sentido, estou mais próximo da economia de Sócrates tal como é descrita por Adolf Loos. 

 


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