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Em entrevista a Bill Steigerwald, na edição de Junho de 2001 da revista Reason, Jane Jacobs alerta para o perigo da “não-mudança” quando “não revemos, não repensamos”1. Conhecer e olhar criticamente o que nos precede, reavaliar permanentemente a pertinência do legado em que orientamos a nossa prática e estruturamos o nosso pensamento, é o exercício que nos permite a sustentação da mudança, a possibilidade de nos reposicionarmos ou legitimarmos a nossa posição.
     Celebramos, este ano, o cinquentenário da publicação do mítico
The Death and Life of Great American Cities2*, de Jane Jacobs, um dos mais preponderantes e pioneiros manuais para a compreensão do funcionamento da cidade e uma referência maior na história da crítica e teoria do planeamento urbano. Cinquenta anos volvidos, mais de metade da população mundial passou a ser urbana, e a cidade, como organismo, sofre, actualmente, o mais célere processo de mutação e crescimento, tornando imperativa uma revisão dos instrumentos de planeamento de que nos servimos e dos princípios que estimulam o nosso pensamento, ao ritmo da sua transformação.
     Jane Jacobs foi, antes de mais, uma entusiasta habitante e atenta observadora da cidade. Servindo-se, não da distante abstracção de desenhos arquitectónicos, mas da simples compreensão e descrição do seu habitat
  – o bairro de Greenwich Village, em primeira instância, e da cidade de Nova Iorque, entre outras cidades norte-americanas –, para demonstrar que nos bastaria “observar atentamente as cidades reais” e “reflectir sobre o que vemos”3 para entendermos o seu funcionamento e ilustrarmos as ideias patentes no seu livro –, descreveu, coloquial e minuciosamente, com sentido de humor acutilante, os vários constituintes e intervenientes na estrutura e vida urbanas, no “ballet do passeio”4 e as suas teias de relação, cativando-nos pela interpretação e redescoberta da cidade, que pensávamos, ingenuamente, já conhecer.
     Em
The Death and Life of Great American Cities, Jacobs caracteriza, habilmente, a grande cidade como sendo o espaço da convivência entre desconhecidos, apontando esta como principal diferença face aos subúrbios e cidades de pequena dimensão e, consequentemente, a segurança como atributo imprescindível para o conforto nessa coexistência. Defende a importância da rua, ou do passeio, enquanto parte da rua destinada aos peões, como elemento primário, estruturante e tradutor das mais valias e dos problemas da cidade, afirmando que “se as ruas de uma cidade parecerem interessantes, a cidade parecerá interessante; se elas parecerem monótonas, ela parecerá monótona”5. À rede de diferentes utilizadores da rua, Jacobs atribui a missão da “vigilância do tipo faça-você-mesmo”6, a natural manutenção da segurança, reforçando a importância da existência de um enredo de relações que estabeleçam respeito e confiança – uma vizinhança – onde a compreensão da identidade pública de cada um, o sentimento de pertença e o reconhecimento de um papel activo nesta trama e no espaço público são decisivos para o sucesso do mesmo. Uma rua dotada de infra-estruturas que atraiam mais desconhecidos, mais movimentada, será sempre, segundo Jacobs, mais segura do que uma rua deserta, e os nossos esforços devem ser empregados na concentração deste capital social urbano para o combate à homogeneidade e à “Grande Praga da Monotonia”7, principais culpados pelo insucesso e decadência das cidades. Para tal, Jacobs enfatiza a urgência da produção de diversidade, propondo quatro medidas basilares, extraordinariamente actuais: a combinação de usos primários, atraindo tipos distintos de utilizador, e em diferentes horários do dia, que povoam a rua e dinamizam a actividade económica; a mescla de edifícios de diversas idades e em distintos estados de conservação, estabelecendo rendas de diferentes escalões; a existência de quarteirões de curta dimensão, evitando o isolamento e oferecendo a multiplicidade de trajectos e perspectivas visuais; e a densificação populacional e de ocupação do solo, para uma maior concentração e consequente proximidade entre pessoas, fomentando a interacção e uma variedade de experiências sociais. Com estes “geradores de diversidade”, Jacobs aspirava potenciar o que é “natural às grandes cidades”8 e o que nelas nos atrai e procuramos encontrar – a promessa urbana da oportunidade, a mescla de pessoas, equipamentos e cenários, numa densa e vibrante trama, com lugar para a espontaneidade, a evolução e a feliz ocorrência do inesperado, entre os seus desconhecidos, a “serendipidade”.
     Jacobs critica, audaz e contundentemente, os princípios vigentes no planeamento urbano da década de 1950, muitos deles imperando ainda hoje, desconstruindo, inteligentemente, os dogmas e clichés
 , socialmente aceites, da esfera do urbanismo. Ataca ferozmente o efeito discriminador da rotulação de comunidades, organizadas em conjuntos habitacionais, tendo como base o seu rendimento económico e estatuto social, criticando as operações de revitalização urbana que realojam, de modo paternalista, moradores de bairros precários em novos empreendimentos que estendem e agravam os efeitos perversos da segregação e destroem relações de vizinhança. Por oposição, Jacobs defende, sempre que possível, a recuperação dos bairros precários e propõe o modelo de financiamento da habitação de renda garantida para edifícios intrincados na cidade consolidada, novos ou previamente existentes, ao encontro da máxima diversidade e mescla de utilizadores, bem como de densificação de áreas menos habitadas da cidade. Repudia a forma acrítica e oportuna como as áreas livres ou “verdes” são veneradas e a sua existência defendida, por si só, em qualquer circunstância, alegando que a quantidade de parques não equivale a qualidade, alertando para a ameaça do elogio da natureza sentimentalizada, bucolicamente expressa como antítese da cidade artificial, mas que, em ímpetos de domesticação, se devasta e suburbaniza. Recusa, igualmente, a gratuita culpabilização dos automóveis por todos os problemas da cidade, defendendo a pertinência da sua presença e utilização, mas chamando a atenção, no entanto, para a sua destruidora capacidade de erosão e para a necessidade de apostar no transporte público.
    
Na sua controversa e incisiva crítica, Jacobs elege a Cidade-Jardim de Ebenezer Howard, a Ville Radieuse de Le Corbusier e o movimento City Beautiful, fundamentalmente impulsionado por Daniel Burnham (a trilogia que ironicamente denomina “Radiant Garden City Beautiful”9), como ilustrações da antítese do seu pensamento, e identifica, na maioria dos urbanistas e governantes públicos e privados seus contemporâneos – nomeadamente em Robert Moses, seu rival histórico –, os maléficos efeitos desta influência. Despreza a prevalência do culto do projecto arquitectónico, introvertido e alheado da cidade, face ao culto da reforma social e o esvaziamento ideológico de uma incessante busca pelo progresso, aliada à visão higienista que não compreende a génese complexa, estratificada, diversa e em permanente mutação, da cidade.
     Mas, no decorrer destes 50 anos, Jacobs foi também alvo de duras críticas que se prendem, a meu ver, mais com a distorção, radicalização ou reinterpretação incorrecta das suas ideias, e menos com o que realmente lemos em
The Death and Life of Great American Cities. A sua visão foi, frequente e oportunamente, adaptada pelos seus simpatizantes ao sabor da necessidade e, posteriormente, as várias e fantasiosas adaptações foram criticadas como sendo de Jacobs, o que nos situa no meio de uma falsa discussão. Entre outras críticas, Jacobs é, sobretudo, acusada de ser a responsável pelo surgimento do processo de gentrificação, dos movimentos preservacionistas e dos movimentos NIMBY, Not In My Back Yard  ou Não no Meu Quintal.
     No que respeita à questão da gentrificação, convirá abordar que o desenvolvimento e a prosperidade de determinadas áreas da cidade podem provocar mudanças culturais, atrair a especulação e a inflação sobre os arrendamentos, expulsando os seus moradores e comerciantes, e acabando, em última instância, por extinguir os elementos inicialmente responsáveis pelo seu sucesso. Citando Jacobs: “A gentrificação é, como muitas outras coisas, uma moeda de duas faces. Pode funcionar bem, mas levada ao extremo, funciona mal.”10 Ora, Jacobs pode ser responsabilizada pelo incentivo à ocupação dos centros urbanos, em detrimento do subúrbio, e pela defesa de medidas que revitalizam áreas consolidadas da cidade, ou seja, pode estar comprometida com o processo benéfico da gentrificação. Quanto à sua possível degeneração, cabe-nos o acompanhamento e a introdução de medidas capazes de moldar a desenfreada transformação deste fenómeno a nosso favor. A visão de Jacobs foi romantizada e as suas orientações gerais reconvertidas em fórmulas específicas e de aplicação universal, nomeadamente pelos movimentos preservacionistas que se opõem a qualquer mudança na estrutura histórica da cidade usando os argumentos de Jacobs, cuja obra incidiu, precisamente, no processo de mudança, encorajando o respeito pelo contexto social e histórico e pelos valores preexistentes, mas sempre favorável à transformação, pelo desenvolvimento, desses mesmos princípios e valores. Embora a sua legitimidade seja por vezes discutível, os movimentos NIMBY – grupos organizados de cidadãos que se manifestam em protesto público por determinadas decisões que directamente os afectam – são, de facto, inspirados em Jacobs e numa das mais importantes heranças que nos deixa: a democratização da discussão sobre a cidade.

     Sem nenhum tipo de formação académica em arquitectura ou urbanismo, Jacobs desafiou o poder e o ideário instituídos, reclamando o direito dos cidadãos na participação da tomada de decisões, que acreditava serem enriquecidas e validadas pela adição de uma visão de quem habitava os lugares: “As cidades têm capacidade para oferecer algo a todos, mas só porque, e quando, são criadas por todos.”11
     Não obstante a relevância e surpreendente actualidade das reflexões de Jacobs já aqui abordadas, na revisitação do seu legado será fundamental destacar, quer pela sua contemporaneidade, quer pela sua presente pertinência, um último conjunto de reflexões:
     • O reconhecimento da importância do capital como motor de funcionamento das cidades, como elemento preponderante na determinação da decadência ou do seu sucesso, questionando o modo como ele é gasto, em especial no que respeita a fundos públicos, especulativamente e em poderosas e massivas operações, ao invés de numa “mudança contínua, gradual, complexa e suave”12. Sugerindo-se, simultaneamente, que a máquina financeira foi ajustada para criar imagens de anticidade porque assim a nossa sociedade determinou, e que podemos usar o investimento privado em prol de uma cidade viva e diversificada, se assim o desejarmos;

     • A identificação da cidade como “um problema de complexidade organizada”13 para o qual não existem análises e soluções generalizadas. Nada há de acidental, irracional ou caótico na forma como os vários elementos, constituintes da cidade, se relacionam e mutuamente se influenciam;
     • A incorporação, em todo o seu pensamento, do sistema de desenvolvimento que parte de uma base para o topo – bottom-up
–, desde a apologia da democracia de base, até à defesa do planeamento estratégico que faculta as condições de origem necessárias para o progresso sem meta pré-definida, dando lugar ao inesperado.
     Num tempo de globalização e consumo, em que a novidade rapidamente se esgota, a procura da ocorrência do inesperado, da serendipidade de Jacobs, parece estar, de novo, na ordem do dia. O visionário do universo digital, Ethan Zuckerman, aponta a obra de Jacobs, a cidade e o planeamento urbano, como suportes primários no estudo da serendipidade, com vista à sua aplicação virtual como “ferramenta de ajuda no combate à homofilia”14, na reestruturação das infra-estruturas digitais, reiterando que “a serendipidade não é uma questão de sorte, mas algo que podemos analisar, compreender e fazer melhor”15.

     Os projectistas da cidade virtual repensam e reutilizam, hoje, o legado de Jacobs, resta saber se os da cidade real também o farão.
     Augura-se uma longa vida a
The Death and Life of Great American Cities. |

____________

[N.A.] A tradução das citações, a partir do inglês, é da responsabilidade da autora.

1
Jane Jacobs. City Views: Urban studies legend Jane Jacobs on gentrification, the New Urbanism and her legacy. Reason. Washington : Reason Foundation. (Jun. 2001). Entrevista concedida a Bill Steigerwald.

2 Id. The Death and Life of Great American Cities. New York : Vintage, 1961.

*
[N.E.] Há tradução em português do Brasil: Morte e vida de grandes cidades. São Paulo : Martins Fontes, 2009. 2ª ed. 528 p. ISBN 9788578271732.

3 Ibid. Nota introdutória referente às ilustrações.

4 Ibid
., p. 50.

5
Ibid., p. 29.

6 Ibid., p. 39.

7 Ibid
., p. 144.

8 Ibid
., p. 143.

9 Ibid
., p. 417.

10 Jane Jacobs. Godmother of the American City. Metropolis. New York. (Mars 2001). Entrevista concedida a Jim Kunstler.

11 Id. The Death and Life of Great American Cities, p. 238.

12 Ibid., p. 317.

13 Ibid., p. 438.

14
“I’m interested in serendipity as one of the tools that can help combat homophily.” Ethan Zuckerman. The architecture of serendipity.  My heart’s in Accra (blog). [Em linha]. (9 June 2008) [Consult. 13 Nov. 2010]. http://www.ethanzuckerman.com/blog/2008/06/09/the-architecture-of-serendipity/

15
“Serendipity isn’t just luck, but something we can analyse, understand and get better at.” Id. John Hagel on Serendipity. My heart’s in Accra (blog). [Em linha]. (7 Mar. 2009). [Consult. 13 Nov. 2010]. http://www.ethanzuckerman.com/blog/2009/07/03/john-hagel-on-serendipity/

 


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