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Evidências e problemas

Para os modernos, a beleza tornou-se um problema, isto é, deixou de ser uma evidência que arrastava consigo uma série de coisas que não eram objecto de interrogação, mas de veneração, de riso, de silêncio e voz. Não há Musa para a beleza, isto é, a beleza não é propriamente uma disposição criativa da voz e do corpo, a beleza é um brilho que não cessa: Phanes, invenção da poesia órfica, o esplendor, o fulgor do ceptro divino cuja sede é a noite, fonte de luz invisível,  aproximação ao imediato, ao coração hermafrodita da vida.

Plotino (o último filósofo grego, como lhe chama Giorgio Colli), que mostrou tão bem que estamos quase sempre no dois, o que tem que ver com o desdobramento próprio da inteligência e da criação das formas, imaginou o um (já dizer esta palavra parece ser demais) para se referir àquilo (embora não seja um “aquilo”) que está para além de todo o desdobramento: a energia inesgotável, imorredoira, que antecede toda a forma e toda a inteligência, a potência sem qualquer determinação. E quais são os acessos ou, por outras palavras, como é que Plotino chegou a isso que se furta a toda a palavra, que está para além do desdobramento no qual se tece a nossa vida? Por meio de um abandono da estrutura sentimental àquilo mesmo que provoca o sentir e o sentimento: a visão de um homem belo, o sabor de um vinho, o odor de um perfume, de modo que a trama espácio-temporal sofre, por assim dizer, um rasgão, isto é, a beleza, a embriaguez e o odor absorvem aquele que as sente.                                                                              

 

Prazer, reprodução e demora

A categoria da causalidade não tem lugar no que respeita ao prazer. Como a rosa, o prazer é sem porquê. Também o prazer do belo (o prazer estético em Kant) não conhece justificação causal, com a particularidade de se reproduzir a si próprio. Aquele que toma parte neste prazer experimenta uma demora que tem que ver com essa reprodução, não se cansa de se manter nessa demora, pede mais demora, e se não fosse a sobrevivência não a interrompia.

 

O que agrada e aquilo de que se anda à procura

No momento em que o belo se reduz àquilo que me agrada a mim, todas as conversas sobre ele começam a saber mal. Aliás, a palavra caiu em desuso e converteu-se numa espécie de interjeição (equivalente a esfregar o estômago,  quando se mata a fome com um pitéu, Wittgenstein dixit). Sente-se que é melhor evitá-la por enquanto, embora jamais se possa dispensá-la, pois o belo já correspondeu àquilo de que se anda à procura, àquilo que mais se ama. Foi assim que Hermann Broch, nos seus textos sobre o mal no sistema de valores da arte, exigiu abstenção, uma dieta purificadora, exigiu que se deixasse cair a palavra belo quando se fala da arte, ao mesmo tempo que convertia a beleza no alvo infinito do próprio sistema da arte. Na verdade, a beleza não tem pedagogia possível. No termo do seu escrito sobre as proporções dos corpos e dos rostos, Dürer, depois de ter mostrado com maestria o método diagramático capaz de restituir as proporções, exclama (como se gritasse): e como distinguir pelo juízo dois homens belos? E conclui: tais são as trevas a que o entendimento sucumbe.

 

Tocar as raias da vida

Na decisão de não pôr de lado o elemento hermético da arte – a beleza –
está seguramente um dos traços da inactualidade própria de Benjamin (como sabemos, evitar falar da beleza é desde o modernismo uma das marcas do pensamento crítico dominante). Mesmo nos seus textos de natureza mais programática, observamos sempre o esforço crítico da conversão da beleza em objecto de saber: a passagem que vai do brilho ao inexpressivo, ao sem-expressão. Não há beleza sem brilho, mas sem o inexpressivo o brilho fica condenado a ser simples atracção, a seduzir. Já a redução simétrica, a saber, o inexpressivo sem brilho, seria uma espécie de nado-morto (um espírito sem corpo, ideia que causava horror a Benjamin, e que traduzida em termos mais crus se declinou em Hamann como a impossibilidade de conceber Deus sem pudenda). Aquela passagem alimenta-se de si mesma, é uma tensão que não conhece termo, na qual se reconhece que a arte está a tocar nas raias da vida. 

 

Belo, natureza e história

Que muitas épocas tenham dedicado a atenção a certas obras de arte, faz com que elas pareçam estar imunes ao juízo crítico, de modo que deixam de estar sujeitas a escrutínio: eis o paradoxo próprio do belo histórico. Já em relação ao belo natural, analfabeto (fazendo vénia a Herberto Helder), debatemo-nos com uma resistência própria daquilo que pertence a si próprio: a coisa apresenta-se-nos no seu puro estado de semelhança – como o orvalho ou a Aurora, que na verdade não conseguiríamos inventar. Estas ideias procedem de um texto de Benjamin sobre Baudelaire.

 

Por agora, de partida, em fuga

Baudelaire surpreendeu a beleza moderna – um gesto de heroicidade que consiste em converter o que passa, o transitório, em eterno. Não é bem um passe de mágica, mas um passo de desespero, pois reconhecendo que nada mais resta além do que passa, trata-se de, por intensificação, protegê-lo da sua própria natureza (paradoxo que se revê no paradoxo simétrico da novidade, entendida como o que não pode deixar de se repetir, isto é, o choque que ela provoca retorna infernalmente). 

Observa-se em Baudelaire simultaneamente o medo de tornar-se antigo, isto é, de deixar de ser legível, de “passar à história” (no “Manifesto
do Futurismo”, este medo, travestido de cólera, desprezo e ímpeto destrutivo, é uma das suas fontes de inspiração), de se tornar em objecto de “antiquário”, e o desejo de se converter num Antigo (uma palavra que caiu em desuso no século XX), isto é, de ser imortal, um género de imortalidade que não deve ser separada do modo como os artistas e poetas são apresentados por ele: “chasseurs perdus dans les grands bois”, como se nunca tivessem feito parte da cidade.

 

Coisas de arquitectura

Que não haja épocas de decadência é um pathos avesso àquele que foi engendrado pela consciência histórica, isto é, a compreensão de que nós não somos eles e de que viemos depois deles, acompanhada por uma percepção de perda irremediável que ficou selada com o nome de decadência. Daquele pathos fez Benjamin o nervo do trabalho sobre as Passagens (elementos arquitectónicos do século XIX em Paris, que, segundo ele, concentravam e expandiam todos os paradoxos da experiência de ser moderno). Por isso para ele, e continuando, “qualquer cidade é bela para mim […], do mesmo modo que não é aceitável um discurso sobre o valor maior ou menor das línguas”. E, no entanto, a cidade moderna é fértil no declínio da aura, nela impera o olhar não retribuído. Só que a invenção da fotografia e do cinema levou a um refazer das relações entre a aura e o seu declínio, ao surpreender no declínio uma nova magia do olhar. Metamorfose que alguns não conseguem observar.

Aliás, é de sublinhar que para Benjamin o espaço é uma experiência com a cidade, com os nomes das ruas, com os seus limiares. Perder-se na cidade – uma descoberta inebriante da infância – é uma das matrizes para qualquer descoberta, perder-se no familiar e tirar as consequências. Não se pode deixar de evocar os olhares familiares que nos lançam as janelas, os candeeiros, as ruas, os navios de Lisboa em O sentimento de um Ocidental de Cesário Verde. Poeta que praticou como poucos a arte da cópia por oposição à arte da leitura, isto é (e seguindo uma distinção benjaminiana), foi capaz de surpreender o poder que cada acidente da cidade irradia em vez de sobrevoar a cidade, convertendo-a em pura extensão topográfica. 

Será que as partes mais recentes das nossas cidades ainda permitem essa experiência de se perder nelas?

 

Questões de segurança

É muito impressionante que Kant na sua “Analítica do Sublime” tenha tomado o corpo como matriz da experiências da desmedida e da impotência, próprias respectivamente do sublime matemático e do sublime dinâmico, pondo em relevo o seu valor originário e sacrificial. O corpo, ultrapassado pela grandeza incomensurável (que é medida pelo corpo e não por outro padrão qualquer, por isso é que o sublime é um juízo estético), sente-se minúsculo, e o corpo vencido pela potência excessiva sente-se frágil, em perigo e tem medo, mesmo que a ameaça só seja imaginária. A relação entre o temor provocado pela impotência esteticamente qualificada e o elemento religioso é inevitável. Muitas vezes nas zonas mais hostis das nossa cidades esse medo vem ter connosco, e o elemento religioso toma a forma grotesca de uma questão de segurança.

 

O inabsorvível

Mesmo num amante da natureza como Goethe encontramos uma estranha confissão: “Tudo no mundo se pode suportar a não ser uma série de dias bonitos.” (Schön, a palavra alemã que se traduziu aqui por “bonito”, corresponde à palavra “belo” em português.) Estranheza que talvez se dissipe se admitirmos que o esplendor excessivo e prolongado, inabsorvível pela nossa alma, nos pode aniquilar. Em Baudelaire encontramos uma confissão da mesma ordem: “A persistência do Sol deita-me abaixo.” Na verdade, Edgar Allan Poe, que proclamou o amor pela luz artificial, foi o seu mestre. E Benjamin, para quem a expectativa de um céu coberto era na infância uma promessa de alegria, anuncia “que ainda está por escrever o capítulo descrevendo o combate que [os poetas malditos] travam contra o Sol”.

 

rememoração e meteorologia

Penetrar num templo grego é seguramente a fonte da intuição mais precisa e completa daquilo que foi a Antiguidade, ainda mais do que a poesia e a filosofia gregas, isto é, mover o nosso corpo, obedecendo à disciplina da forma arquitectónica, proporciona a condição para a efectivação plena dos movimentos da memória (Giorgio Colli assistiu-nos aqui). E isto porque a medida do corpo começa a ser medida e transformada simbolicamente, e por isso, como diz Benjamin,  não somos nós que entramos no templo, é ele que entra em nós. Mal entramos no templo e ele começa a agir sobre nós,  alimenta a nossa respiração e cava a profundidade do nosso corpo. A autenticidade das formas arquitectónicas mostra-se no segregarem a sua própria atmosfera. Somos, por assim dizer, varados por essa meteorologia: trata-se de descobrir o tempo que lá faz.

 

Pedir ao momento que não passe (por ser tão belo)

É como pedir ao que acabou de morrer: “Levanta-te Lázaro!” Os poetas são os senhores desse pedido. 

 

Um cortejo sem hierarquia

Brilho, autenticidade, revelação, segredo, mistério, coesão, resistência, distância, proximidade, alegria, embriaguez, infinito, ondulação, fusão, perda de fôlego, harmonia, inteireza, torso, profundidade, pele, esplendor, ouro. | 


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