Um plano espelhado, suportado por vigas que atravessavam as janelas da Fundaco Marcello, no Canal Grande, era o objecto central da representação portuguesa na Bienal de Veneza, comissariada por José Gil e Joaquim Moreno. Numa leitura imediata, este elemento completava a frente do armazém de um só piso e estabelecia uma continuidade de alinhamento com os edifícios adjacentes. O uso de uma superfície espelhada acrescentava uma certa dose de provocação, tendo em conta o actual conservadorismo de Veneza; afinal, as superfícies envidraçadas e neutras são o símbolo maior da temida “cidade moderna”.
Os autores da intervenção, Eduardo Souto de Moura e Ângelo de Sousa, assumiram ainda a referência ao famoso desenho de Robert Venturi onde consta um volume banal com um cartaz que proclama: “I Am a Monument” (à época, um “contra-projecto” para o Boston City Hall). No decorrer do processo, chegaram a contemplar a hipótese de recorrer a essa frase, e inscrevê-la no plano, ou a uma alternativa: “Io Sono un Specchio” (talvez um cruzamento invulgar de Venturi com o Magritte de Ceci n’est pas une pipe). O desenho de Venturi é uma aplicação da teoria do “decorated shed” (barraco decorado), um tema encontrado em Learning From Las Vegas1: a arquitectura podia afinal ser fancy e chã, já que um elemento decorativo sobreposto faria a festa. Aí está uma arquitectura “populista”.
Em Veneza, o outdoor espelhado introduzia, com efeito, uma dimensão pública no modesto armazém. Não o fazia, no entanto, recorrendo a elementos gráficos ou cenográficos à Las Vegas, mas fixando uma curtain wall, exactamente a imagem tipo da arquitectura moderna combatida por Venturi. Mesmo com este paradoxo, a referência ao “decorated shed” neste contexto veneziano era uma bela homenagem. Ao evocar habitualmente Venturi e Aldo Rossi, Souto de Moura fala de arquitectos que estão no limiar do que acontece hoje. Mesmo se já em perda, Venturi, a favor do “senso comum”, e Rossi, da “razão exaltada”, ainda tinham um guião. No Canal Grande, o hipotético outdoor suspenso à frente da Fundaco Marcello era uma vénia a essa última racionalidade. Mais à frente está a coluna de Filarete a que Rossi faz referência na Autobiografia Cientifica2.
Há ainda outro modo de ver a intervenção que a coloca directamente no tema geral da Bienal: Out there: Architecture beyond building – como a ruína de uma curtain wall, o fragmento “encontrado” de algo maior, um objecto misterioso, enigmático, “Out there”. José Gil e Joaquim Moreno optaram por traduzir literalmente “Out there” como “Lá Fora”, a que contrapuseram Cá Fora: Arquitectura Desassossegada. Mas “Out there” tem o sentido múltiplo de algo que “anda por aí”, misteriosamente, ou ainda de algo para lá da norma, fantástico, em termos coloquiais, “fora” ou “passado”. As premissas curatoriais de Aaron Betsky, o comissário geral da exposição, e o conjunto de objectos visionários ou “estranhos” expostos no Arsenale – e, em particular, as “casas” dos Asymptote Architecture – apontavam nesse sentido. Betsky propunha uma arquitectura como “mundo alternativo”, a “contínua revelação de onde estamos e talvez até de quem somos”; ou ainda, nesse contexto, uma “arquitectura espectacular”, fora do mainstream. Embora distante do visionarismo digital e deste ardente desejo de estar “para lá do edifício”, ao centrar-se num plano espelhado, fragmentado e inconclusivo, num jogo de espelhos no interior do espaço, e ganhando expressão nesta crueza de meios, a instalação portuguesa era decididamente “Out there”. Se entendermos a superfície espelhada como um fragmento recuperado, talvez de um prédio tardo-moderno demolido em Mestre ou no Lido, estamos “para lá do edifício”, numa arquitectura espectral, “Out there”. Ou “desassossegada”, nos termos dos comissários.
Desde as primeiras obras, Souto de Moura ensaia a passagem do sistema neo-plástico para um sistema da ruína: cada plano outrora límpido, pré-fabricado ou serial tende agora a ser arcaico (de pedra), fragmentário, deslocado. Da totalidade moderna sobram alguns fragmentos – alguns fantasmas? – como este espelho exposto em Veneza. A ansiedade sobre a totalidade e mudez “miesiana” levam à fragmentação da ruína; e a ruína está cheia de significados; a ruína “fala”. É neste circuito que Souto de Moura trabalha desde os anos 80, e é aí que a sua arquitectura ganha expressão contemporânea. A linha que separa a “normalidade” doméstica das casas “minimais” e a estranheza de uma arquitectura levada ao osso é ténue e, às vezes, é ultrapassada, como é o caso.
A abordagem de Betsky na Bienal remetia para uma “arquitectura que é estranha, inútil, fora do vulgar, esplendorosamente absurda”. O espelho no Canal Grande parecia pertencer a essa dimensão “Out there”, mesmo se as suas refe- rências estão mais próximas de Roma Interrota – a exposição de 1978 reinstalada no Arsenale (com Rossi e Venturi, entre outros) – do que de Uneternal City, a prefiguração da Roma do futuro. O lápis, a estrutura de ferro e o espelho podem ser mais estranhos, mesmo se mais arcaicos, do que a luz, o som e os efeitos da discoteca digital. Em Veneza entrava-se no espaço expositivo pela área dos contrapesos do grande plano espelhado – pequenas dissonâncias; pequenos atalhos. |
11ª Exposição Internacional de Arquitectura La Biennale di Venezia
Comissários: José Gil e Joaquim Moreno
Projecto: Eduardo Souto de Moura e Ângelo de Sousa
14 de Setembro a 23 de Novembro de 2008
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1 VENTURI, Robert; BROWN, Denise Scott; IZENOUR, Steven. Learning from Las Vegas (rev. ed.). Cambridge Mass. : The MIT Press, 1977.
2 ROSSI, Aldo. Autobiografia Cientifica. Barcelona: Gustavo Gili, 1984.