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José Celestino da Silva Maneiras nasce em Macau, em 1935, numa família macaense enraizada na sociedade local. Permanece nove anos em Portugal, onde chega em 1953, em pleno pós-guerra, e quando o regime do Estado Novo admite aberturas pontuais ao contexto internacional, como prova a realização, em Lisboa, do III congresso da União Internacional de Arquitectos (UIA). Dois anos depois, ingressa no Curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes do Porto, diplomando-se em 1962. Nesse mesmo ano retorna ao território chinês então sob administração portuguesa. A cidade possui uma elite fechada, provinciana e colonial, pouco receptiva a novidades exteriores e também à arquitectura internacional. Não há grande actividade construtiva e a edificação corrente não excede os três pisos, devendo-se essencialmente ao trabalho de engenheiros radicados no território ou a desenhadores chineses que reproduzem mecanicamente projectos de arquitectos e de outros profissionais. No arranque dos anos de 1960, o objectivo de promotores e empreiteiros é já ganhar dinheiro rapidamente.
     O regresso de José Maneiras faz parte de um breve movimento migratório que leva um conjunto de jovens arquitectos portugueses a Macau, casos de Manuel Vicente, Natália Gomes, Ramires Fernandes ou Jorge Silva. Integram então os quadros técnicos do governo local, desenvolvendo planos urbanos para a cidade. A equipa, coordenada por Manuel Vicente, opta por propor planos parcelares, contendo directrizes orientadoras para alinhamentos e cérceas. As propostas são mal recebidas pela população, maioritariamente chinesa, criando alguma inércia à sua aplicação com a conivência da administração colonial pressionada pela condição política da República Popular da China, com quem Portugal não mantém relações diplomáticas.
     Desse grupo inicial de arquitectos, a partir de 1966 apenas Maneiras permanece em Macau. Uma possível mobilização militar para a guerra colonial, em curso nos então territórios portugueses em África, obriga-o a ficar. Sucede a Manuel Vicente no acompanhamento à obra do Liceu Pedro Nolasco de Raul Chorão Ramalho – um dos edifícios modernos mais significativos da presença portuguesa – batendo-se mais tarde contra a sua demolição. Os acontecimentos de 3 de Dezembro de 1966 no território (o amotinamento popular, que ficou conhecido por  “1-2-3”, muito influenciado pelo clima vivido durante a Revolução Cultural chinesa), que coloca em causa o governo colonial, e o afastamento geográfico face à Metrópole, provocam um período de baixo investimento que se reflecte na quase inexistência de encomenda pública e privada.
     A partir de 1967, José Maneiras lança-se na actividade privada, mantendo um atelier de produção “artesanal”, com a colaboração de um ou dois desenhadores, e seleccionando as encomendas, o que lhe permite sobreviver aos tempos de menor solicitação de projectos. Da sua obra construída durante esta fase, e localizada essencialmente em Macau, torna-se tarefa difícil encontrar exemplares intactos. Muitos edifícios foram demolidos, intervencionados ou estão em risco de desaparecer. A falta de hábito de registo, por parte dos profissionais da sua geração, também não ajuda ao levantamento sistemático deste património quase desconhecido. Mas nestes anos de 1960, o arquitecto desenha e concretiza um conjunto de edifícios residenciais de inclinação brutalista, no quadro das exigências das regiões tropicais, que constitui, provavelmente, a sua fase criativa mais importante. Deste elenco, destacam-se os conjuntos habitacionais na Rua da Praia Grande (Conjunto São Francisco, 1964), na Estrada do Visconde de São Januário (duas residências, 1965), Belle Court na Penha (casa e bloco de apartamentos, 1968) ou o programa residencial para invisuais, a pedido da Santa Casa da Misericórdia (1970), na Rua Sete do Bairro da Areia Preta.
     Entre a construção cerrada de Macau, as variações de escala destes programas residenciais produzem ambientes contrastantes, onde uma urbanidade, colossal e compacta, dá muitas vezes lugar a espaços de maior domesticidade. Na obra de José Maneiras, a torre da Rua Ferreira do Amaral, implantada sobre uma plataforma de serviços, e o bloco de três pisos, para invisuais, funcionam como pólos opostos da mesma realidade urbana.  No momento em que é concretizado este último conjunto, o terreno encontra-se ainda vazio de construções. O projecto é executado com custos muito controlados e áreas que rentabilizam a dimensão do lote.
     O arquitecto elabora ainda fábricas verticais – também um programa especifico de territórios com elevada densidade construtiva e pouca área disponível (a maioria destes imóveis encontra-se actualmente desactivada, uma vez que a produção industrial migrou entretanto para a China, tendo-se Macau especializado no jogo). A apropriação dos edifícios faz-se à mesma velocidade da sua ocupação, alterando algumas das soluções arquitectónicas originais, designadamente aquelas mais ligadas ao controle climatérico. Conforme testemunha, a qualidade construtiva também não é, ao tempo, elevada, facto que contribui para a rápida deterioração e consequente substituição do edificado. A maioria dos materiais empregues é já originária da China. Esta rápida deterioração é igualmente facilitada pela legislação que na época privilegia a propriedade horizontal, ilibando governo e privados da reabilitação dos edifícios.  O 25 de Abril de 1974 vai acelerar o desenvolvimento do território, assistindo-se à chegada de um novo surto de profissionais portugueses durante a década seguinte. Alguns vêm dos antigos territórios coloniais. O arquitecto mantém a mesma postura independente, que caracteriza a sua personalidade profissional antes da Revolução. É o tempo dos grandes equipamentos públicos, desenhados dentro de filiações linguísticas mais corporativas (Interiores e ampliação do Banco Nacional Ultramarino, 1975; Hotel Ramada, não construído, 1980; piscina do Complexo Desportivo, 1984; Centro de Desportos Náuticos na albufeira da barragem de Hac Sa, 1995, p.e.). Em 1987, participa no grupo que funda a Associação de Arquitectos de Macau (AAM). Eleito no ano seguinte para o cargo de presidente, cumpre dois mandatos. Reflexo da dinâmica que imprime à organização, a AAM integra a UIA no XVI congresso realizado em Montreal, em 1990.
     O governo democrático traz novas oportunidades e José Maneiras torna-se igualmente vereador (1972-1989) e, mais tarde, Presidente do Leal Senado (1989-1993), fazendo a ponte entre as culturas chinesa e portuguesa, como é tradição entre a comunidade macaeense. A prática da arquitectura fica, então, em segundo plano. Afasta-se da actividade política no período de Vasco Rocha Vieira, que governa o território na última década da presença portuguesa, entre 1991 e 1999.
     Com a criação da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), em 1999, o território conhece a actual fase de desenvolvimento urbano tornando-se apelativo a profissionais de outras esferas geográficas. É o tempo das grandes corporações de arquitectos de Hong Kong ou dos EUA cuja experiência na produção de uma arquitectura comercial e de inspiração “tecnológica” serve os novos objectivos da cidade. Macau deseja superar Las Vegas, em volume de negócios do jogo, em construção, e em imaginário. Os pequenos ateliers têm maior dificuldade em sobreviver . O conjunto banda e torre da Praia Grande – tropical, complexo e brutalista – surge agora na sombra do “enorme, dourado, reluzente” (e anónimo) novo Casino Lisboa. José Maneiras alia-se a outros arquitectos com obra no território e dá continuidade a uma fase mais direccionada para o acompanhamento de grandes programas urbanos. Projectos como a requalificação da Praça do Tap Seac (2003-2006), com Carlos Marreiros e José Chui Sai Peng, ou a coordenação da equipa projectista do reordenamento viário da Rotunda Dr. Carlos de Assumpção (2006), assinalam este período do seu percurso profissional.
     O crescimento recente da cidade, porém, estigmatiza os edifícios “modernos”. O edifício comercial Si Toi – Hong Kong Bank (actual HSBC – Hong Kong and Shangai Bank Corporation, 1982), também da sua autoria, é um caso exemplar deste fenómeno. Localizado no centro é a primeira obra em Macau a recorrer a um sistema curtain wall. O sistema é adoptado, já em construção, por decisão do promotor que assim procura alinhar-se com as tendências praticadas em Hong Kong, contrariando a opinião do arquitecto que duvida da sua eficácia em climas tropicais. Todavia, José Maneiras adapta o projecto e o edifício constrói-se com dignidade. O programa admite na época, um centro de convenções e escritórios. Hoje está ocupado com clubes privados e salões de bilhar. A pala da cobertura foi entretanto fechada. Um dos actuais proprietários chegou mesmo a romper uma laje para ligar dois pisos. O arquitecto confirma que o edifício original “nem se vê”.
     José Maneiras prossegue entretanto com a sua actividade, privilegiando projectos de pequena escala, como renovações de edifícios de valor patrimonial, e continuando “velhas” práticas, como o acompanhamento da obra ou a elaboração de pormenorizados desenhos. O Monumento à Diáspora Macaeense, na Rua São Tiago da Barra, inaugurado em 2001, insere-se nestas preocupações. Torna-se também consultor na companhia Nam Van, para o Plano da Baía da Praia Grande, e presidente da Assembleia Geral do Laboratório de Engenharia Civil de Macau. Em 2006, é nomeado membro honorário da Ordem dos Arquitectos por indicação do então vice-presidente da instituição portuguesa e seu velho companheiro em Macau, Manuel Vicente. O seu trabalho em defesa da dignidade da prática arquitectónica, num contexto de elevada competição profissional, é considerado um exemplo ético para as novas gerações. O reconhecimento público chega assim entre pares.|

*com Hugo Coelho, em Macau.


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