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Sebentas de História da Arquitectura Moderna é uma colecção invulgar, correndo o risco de ser ou parecer anacrónica. Apresenta-se como um extenso conjunto de livros escrito por um mesmo autor, o que só por si causa estranheza no meio profissional (académico/científico), mas que de algum modo explica e avaliza o resultado. Assume com clareza aquilo a que aparentemente se limita: a passagem, para o formato de livro de bolso, dos conteúdos programáticos detalhados de uma disciplina de História da Arquitectura Moderna, leccionada a alunos de Arquitectura por um mesmo docente.
     Trata-se genuinamente de um legado de Domingos Tavares, professor catedrático da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, jubilado em 2010, que leccionou esta matéria (entre outras), desde 1985. Posiciona-se assim com facilidade como a obra de uma vida dedicada ao magistério da Arquitectura.
     A colecção corresponde a um plano editorial de 23 monografias, cuja numeração respeita à ordenação das matérias do programa da disciplina e não à sequência da publicação. Do plano inicial, faltam apenas seis volumes. A sua publicação iniciou-se em 2003 e foi assumida pelo autor como um plano para dez anos, que tem vindo a ser cumprido com impressionante regularidade, ao ritmo de cerca de dois livros por ano.
     O plano dos livros é tão didáctico quanto autoral. Por isso, e apesar disso, o conceito radica na intenção – anunciada no nome da colecção – de publicar manuais escolares, sem grandes pretensões, mas, um pouco provocatoriamente, no actual contexto científico universitário. Com efeito, sebenta é uma palavra antiquada, pouco simpática, a alcunha do livrinho oficial ou da cópia de apontamentos das aulas com a matéria básica que seria suposto saber de cor. Na palavra sebenta há também um apelo inequívoco a essa aprendizagem tradicional, baseada num saber estabilizado que se transmite de geração em geração, pouco propícia à novidade, ao espírito crítico e interpretativo, que o ensino universitário deve desenvolver. O significado de sebenta coloca assim uma etiqueta que pode enganar: cada um destes livros é muito mais do que uma aula e contém várias lições, sem contudo chegar a ser propriamente um estudo ou um produto de investigação.
     O contexto temático da colecção apresenta-se também tradicional, literalmente clássico: a história da Arquitectura Moderna ou da Idade Clássica. Para os historiadores, e também para muitos arquitectos, sem dúvida, haverá aqui um problema de classificação susceptível de criar algumas confusões: o termo mais adequado seria arquitectura classicista ou da época moderna, seguindo o sentido historiográfico habitual, isto é, entre o Renascimento e a Revolução Industrial, classificação que vai além da história da arte e da arquitectura. Mas talvez isto não seja determinante para o universo dos leitores/discentes. Contudo, não deixa de mostrar o posicionamento do autor, ou o distanciamento do autor, face aos mais recentes conteúdos historiográficos, que dispararam em quantidade na última década e que aqui não são reflectidos, em boa medida porque Domingos Tavares quer vincar a sua profissão de arquitecto e recusa o estatuto de historiador da arquitectura.
     O tema ou a questão do clássico, e em parte alguma falta de problematização, é visível no próprio edifício da colecção, baseado na personalização da arquitectura e quase no limiar do mito ou perfil do arquitecto herói. Contudo, esta abordagem permite o recurso à narrativa, o que sem dúvida facilita a aprendizagem, promove a empatia dos candidatos ao ofício e permite o acompanhamento de um tema importante: a emergência teórica e prática do profissional arquitecto, aspecto incontornável na história da arquitectura deste período.
     Assim, o objecto das monografias é a produção arquitectónica e a evolução profissional de uma cadeia de arquitectos-artistas, cujo nome aparece com um subtítulo que sumariza e destaca o principal contributo de cada um, quase sempre justificando por si só a sua importância e posição na cadeia de livros.
     Deste modo, importa observar a sequência do plano editorial (independentemente dos volumes que já foram publicados ou não) e verificar de que maneira é ela própria o enunciado programático, ou seja, como se posiciona enquanto “construção cronológica do tema” (como é dito na apresentação da colecção).
     Neste elenco estão presentes as personagens obrigatórias: desde logo, Filippo Brunelleschi (2) e Leon Battista Alberti (3), o primeiro dos arquitectos e a base disciplinar; no entanto, a abertura da série com Jan van Eyck (1) pode ser uma surpresa (mas ainda não foi publicado), ao valorizar a pintura e a representação desenhada dos objectos, tratando-se de uma escolha pouco evidente. Seguem-se três autores ligados a temas urbanos: o desenho urbano e o “urbanismo renascentista” com Bernardo Rossellino (4) e Biaggio Rossetti (6), e a inevitável cidade ideal com Filarete (5, por publicar). Falta aqui, neste primeiro Renascimento, o também obrigatório Francesco di Giorgio Martini, mais interessante, até como figura autoral, do que Pietro Lombardo (7), personificação do conservadorismo orientalizante num escultor do Norte, ainda que se perceba a intenção de focar uma nota discordante no panorama italiano.
     Dos nomes indispensáveis e com excelentes subtítulos, ainda que por razões diversas, destaca-se Michelangelo: aprendizagem da arquitectura (9, noção muito chegada a um percurso individual de excepção e a remeter inevitavelmente para a lição já publicada em 1994, pela FAUP Edições), mas igualmente ainda não publicado; e Andrea Palladio: a grande Roma (11), um subtítulo para entendidos, prestando-se a leituras múltiplas, remetendo tanto para os desenhos das Antiguidades de Roma (e seu sucesso editorial), como para a amplitude com que este arquitecto transformou Vicenza numa cidade à imagem mental dos Antigos.
     Enquanto isso, outras figuras obrigatórias são apresentadas com legenda/resumo menos conseguida: Donato Bramante (8) aparece com um dos subtítulos menos afortunados (Arquitectura da ilusão), apesar de remeter para a formação pictórica do artista e para a manipulação das regras da perspectiva. Talvez aqui essa matéria seja valorizada de maneira acertada, mas não deixando de criar algum desequilíbrio frente à fortuna crítica das obras que fez e projectou em Roma e que marcaram sucessivas gerações de profissionais do mais largo espectro.
     Por seu turno, Sebastiano Serlio: tratadismo normativo (12, não publicado), mostra o recurso a um neologismo evitável e alguma dose de equívoco na questão da norma, pois os trabalhos de e sobre Serlio multiplicam-se hoje por muitas e diversificadas consequências e leituras, onde a norma se revela afinal muito flexível/ambígua. Este ponto, aliás, seria encadeável com a terza maniera atribuída a Giulio Romano (10, também não publicado).
     É claramente assinalável o esforço de sair do magnético mundo italiano (por exemplo, prescindindo de nomes como Antonio da Sangallo, o Jovem, Baldassare Peruzzi ou Vignola), dificuldade acrescida dado que o Classicismo é quase por derivação uma história italiana. Esse esforço, implicando riscos na escolha, e dispensando o horizonte flamengo (menos dado ao cultivo das personalidades artísticas/arquitectónicas, é certo), obrigou ainda a saltos de contexto: geográfico, cronológico, cultural.
     A França e Philibert Delorme (13), com a Profissão de arquitecto (o primeiro dos dois únicos franceses da colecção, e em prejuízo de Jacques Androuet du Cerceau, por exemplo), conta com um complemento assinado por Vítor Murtinho (“Compasso e prudência”). Segue-se “o representante português”, António Rodrigues (14), Renascimento em Portugal, com um capítulo sobre geometria assinado por João Pedro Xavier, um recurso a contributos especializados que poderia ter sido mais usado com proveito. Demonstrando grande coragem ao enfrentar uma figura pouco clara em variadíssimos aspectos, tão mitificada quanto obscurecida, faz o balanço entre o documentado e o suposto, mas sem chegar a conseguir questionar o papel expoente que lhe tem sido atribuído pela historiografia portuguesa da arte.
     Também como opção representativa, Juan de Herrera (15), Disciplina na arquitectura, é o único espanhol da lista. Neste último caso, sublinhando a importância da base geométrica, ainda que podendo dar mais espaço à questão da pedagogia das matemáticas; contudo, deixa evidente a complexidade da personagem e a formação científica e polifacetada do seu perfil militar de base, concedendo ainda a espessura necessária ao contexto da monarquia ibérica.
     A Inglaterra é o ambiente seguinte, com um título adequado ao enquadramento da figura de Inigo Jones (16), autojustificativo: Classicismo inglês. A partir deste patamar, a linearidade ou a clareza do alinhamento de nomes e da própria construção do tema, esbate-se. O critério da sequência e das escolhas é menos evidente, suscita algumas dúvidas ou revela hesitações.
     A Grande França e Louis Le Vau (17), com A dimensão do infinito, introduzem quase uma ruptura de escala, sendo inevitável lembrar o papel de outros franceses (obviamente, desde François Mansard a Jules-Hardouin Mansard) na consolidação de um Classicismo francês, significativo também pela sua capacidade de influência em muitas outras culturas arquitectónicas. Talvez porque neste contexto o encomendador (nada menos do que Luís XIV), ganha tanto ou mais protagonismo do que o arquitecto, bastante mais considerado, enquanto personalidade criativa, na cultura italiana. Teria sido interessante a selecção do jardineiro/arquitecto paisagista André le Nôtre (para além de um capítulo), correndo aqui o risco de incursões multidisciplinares, como o arranque da colecção parece prometer.
     Da mesma maneira, é difícil compreender a ausência de Gian Lorenzo Bernini enquanto “titular” de uma monografia, indispensável contrapeso classicista da produção e da personalidade trágica de Francesco Borromini (18, Dinâmicas da arquitectura), até pela maneira como este último haveria de personificar a reacção que criou a ideia de estilo barroco. Na verdade, este número ressente-se do facto de conglomerar os contributos fortes de Maderno, Bernini ou Pietro da Cortona, ainda que se perceba a vantagem de individualizar Borromini, até pela quantidade de obras maiores que envolvem quase todas as “multiplicidades” da arquitectura.
     Mais interessante é a possibilidade de comparação da arquitectura de Borromini com a obra de Guarino Guarini (19, Geometrias arquitectónicas, sabiamente seguido pelo contraste com a interpretação quase a-classicista do mundo germânico, aqui representado por Balthazar Neumann (20), justamente O último arquitecto barroco; mas, uma vez mais, a fazer apelo a outros nomes aqui presentes como subsidiários (Fisher von Erlach, Johann Dientzenhofer...).
     Neste sentido, repare-se como, ao nível de leitura do plano editorial, é a primeira e a última vez que ocorre o vocábulo “barroco”, o que pode criar um mal-entendido, suscitando uma espécie de fuga ao problema da leitura estilística como construção historiográfica, evitando um tema ainda não totalmente descontinuado.
     É assim que, para não iniciados, o modo como é apresentado o segundo contributo do mundo lusófono, António Francisco Lisboa (21), Classicismo no Novo Mundo, pode ser não tanto um equívoco, mas quase uma provocação à História da Arte Portuguesa tradicionalque  teria proposto um título como o Aleijadinho e o estilo barroco..., aspecto que poderá dar algumas pistas sobre a complexidade, ambiguidade e por vezes inutilidade destas classificações. No entanto, sendo o escopo da colecção a formação académica, talvez seja ainda necessário, em certas temáticas, explicar primeiro as premissas de base que suportam todas as interrogações e desconstruções. De qualquer modo, a exploração de Lisboa é uma atenção nova e desassombrada da personagem, que importa conhecer.
     Para um remate clássico, coerente e sólido, figuram John Nash (22), Arquitectura urbana, e Claude-Nicolas Ledoux (23), Formas do Iluminismo, a prometer um sábio balanço entre o fim de um ciclo e a abertura de novas perspectivas da história, da época contemporânea.
     A organização de cada monografia é muito semelhante, o que confere grande coerência à colecção. Em simultâneo, essa estrutura comum encontra-se muito bem ajustada a cada caso: cada volume, mais do que uma sebenta escolar, constitui uma monografia de história da arquitectura, segundo a leitura do professor/autor Domingos Tavares.
     Cada livro adopta uma estrutura também ela clássica: contexto histórico, político, cultural, etc., dados biográficos essenciais com destaque para os anos de formação, sequência de capítulos dedicados a obras específicas ou grupos de obras com forte afinidade (seja cronológica, tipológica, urbanística, etc.), frequentemente seguindo os ritmos da cronologia. Cada um dos capítulos recebe um título que destaca a ideia-chave, o que facilita a compreensão dos aspectos fundamentais e concede a cada livrinho uma interpretação global bem amarrada.
     Com efeito, assumindo a colecção um escopo académico, o que por inerência implica investigação, leccionação e divulgação, apresenta neste aspecto o seu ponto forte e o seu ponto fraco. Revelando um óptimo equilíbrio entre narração e descrição, essenciais tanto aos estudantes, como aos profissionais e amadores, e recorrendo com alguma frequência às remissões bibliográficas que suportam a informação, observam-se, no entanto, algumas imprecisões no aparato científico, na medida em que quase não há notas, indicação de fontes e nem sempre a bibliografia mais actualizada está presente, aspecto que vem sendo em parte corrigido nos últimos volumes publicados. Não querendo assumidamente fazer livros “na moda”, acaba por correr o risco da desactualização, ainda que não o da obsolescência.
     Em contrapartida, porém, a análise espacial e material dos objectos, feita na maior das vezes por quem directamente os viu, percorreu e desenhou é um valor incalculável, quando consideramos estar perante uma totalidade “seleccionada” da produção arquitectónica da História da Arquitectura classicista. É preciosa a capacidade de ver e dar a ver através de um texto (a precisar de revisão ortográfica, são escusadas gralhas como Pizza, Sienna ou Brughes...), com o apoio de elementos gráficos desenhados para este efeito, em especial as indispensáveis plantas (com escala). Não se trata aqui de um pormenor, mas de um requisito de base que nenhum livro de História da Arquitectura deveria dispensar. O mesmo se deve ainda dizer da inclusão inicial de mapas geográficos ou urbanos com a localização das obras. Perdoa-se por tudo isso a escassez e fraca qualidade das reproduções fotográficas, efectivamente secundárias neste contexto, até porque maior investimento gráfico colocaria em risco a óptima adequação preço/qualidade. Estes livros, foram concebidos com simplicidade e economia mas querem-se rijos e resistentes”, como os apresenta a Dafne, “editora de vão de escada”, em clara ascensão ao primeiro andar.|


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