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Em 1974, à data da Revolução de Abril, um dos maiores escritórios portugueses de arquitectura situa-se na cidade da Beira, em Moçambique. O Gabinete de Arquitectura, Urbanismo e Decoração Ldª (GAUD) existe desde 1968 e é então dirigido pelos arquitectos Bernardino Carlos Vareta Ramalhete e Eduardo Escudeiro da Naia Marques. Funciona num quarto andar do edifício da Associação Comercial na praça do município, empregando 42 pessoas: oito arquitectos, seis engenheiros e 16 desenhadores, entre medidores-orçamentistas, maquetistas, e outros profissionais do sector. Até ao seu encerramento, passam pelo escritório os arquitectos José Augusto Moreira, Fernando Condesso, José Pacheco, Leonor Figueira, João Bento de Almeida e António Janeira, destacando-se principalmente a figura de Emídio Simões. Alguns são recrutados na metrópole; outros estão radicados na cidade ou cumprem serviço militar em Moçambique. Esta organização, marcadamente empresarial, surge como resposta ao aumento de encomendas públicas e privadas que se verifica no antigo território ultramarino português com o início da guerra colonial, em 1964.
     O GAUD resulta da reestruturação do Gabinete de Arquitectura e Urbanismo (GAU), originalmente formado como exigência para um financiamento bancário. O primeiro gabinete é criado em 1962, por Bernardino Ramalhete com o arquitecto Paulo de Melo Sampaio, nascido em 1926, numa época de menor actividade construtiva em Moçambique e que antecede o surto de investimento imobiliário decorrente da guerra. Em 1966, Eduardo Naia Marques ingressa no escritório e, com a morte de Melo Sampaio em 1968, torna-se sócio. É também neste período que o grupo de engenharia se autonomiza, gerando o Gabinete de Computação e Engenharia, Ldª (GACE). A actividade do GAUD reflecte-se nos cerca de mil projectos de diferentes escalas que desenvolvem até à data da independência moçambicana, desde remodelações de interiores até equipamentos de grande porte, como dependências bancárias, instituições prisionais ou tribunais. Segundo Naia Marques, o paradeiro do espólio do escritório acaba por desaparecer com a independência, restando actualmente pouca documentação desenhada dos projectos a seu cargo. Mas é também provável que Fernando Condesso, responsável pelas obras públicas na época pós-colonial, tenha deslocado parte do arquivo para a Câmara Municipal.
     Até à formação do GAUD, Bernardino Ramalhete e Eduardo Naia Marques acumulam diferentes experiências profissionais. O primeiro, nascido em 1921, em São João da Foz do Douro, no Porto, possui já um sólido percurso como arquitecto e urbanista anterior à sua ida para Moçambique. Geograficamente a sua carreira divide-se por três regiões: a etapa “portuense”, que corresponde à formação e entrada na vida profissional e que é essencialmente vivida na cidade natal ao serviço da Câmara Municipal do Porto (CMP); o período da Beira, que arranca em 1957, quando é admitido por concurso público como arquitecto da autarquia local, seguido da actividade liberal; e a fase actual que arranca no pós 1974, com o regresso a Portugal.
     A fase portuense de Bernardino Ramalhete começa dez anos antes da sua fixação em Moçambique, quando se torna desenhador das Edificações Urbanas da CMP. Só em 1954 obtém o diploma de arquitecto na Escola Superior de Belas Artes da cidade (ESBAP). Nesse mesmo ano acede à equipa de Carlos Ramos que remodela o edifício-sede da autarquia e participa em diversos planos de pormenor. Antes colabora com os arquitectos Fernando Távora e Almeida de Eça no projecto do primeiro bairro alternativo à habi-tação precária das “ilhas” e trabalha para o centro histórico. Em 1956 integra como arquitecto-adjunto o Gabinete de Urbanização da câmara, liderado por Robert Auzelle, para a realização do plano director que será concluído em 1962. Chega a chefiar um inquérito às “ilhas” e inicia estudos para o Plano de Urbanização da Pasteleira, na Foz-Lordelo, sob fiscalização de Auzelle.
     O conhecimento adquirido com o urbanista francês justifica que na Beira seja encarregado da criação do Gabinete do Plano de Urbanização. Durante esta primeira fase de integração na realidade moçambicana, trabalha com o engenheiro Pedro Croner Celestino da Costa na reestruturação do sistema de saneamento da cidade, elabora diversos planos parciais, integra a equipa que revê o Regulamento de Construção Urbana Municipal de 1955, desenha a entrada do parque municipal e projecta habitação para a população desfavorecida. Ainda enquanto arquitecto da administração local, lança a empreitada da Estação dos Caminhos de Ferro, cujo projecto é de 1959, entregando-a aos arquitectos Francisco de Castro, João Garizo do Carmo e Melo Sampaio, seu futuro sócio no GAU. Desta parceria resulta a principal obra moderna de referência na cidade, filiada ainda no Estilo Internacional.
     Em 1961, lança-se na actividade liberal iniciando-se aqui o seu período mais significativo. Trabalha para o governo provincial na execução de escolas primárias e planos de urbanização (Nampula, António Enes e Vila Pery). Entre os edifícios mais emblemáticos desta fase está a igreja de Macuti (1961), com a estrutura metálica visível, a volumetria pavilhonar e o campanário autónomo. O pároco local apelida-a de “armazém de missas” reforçando o aspecto inovador do projecto que responde directamente à encomenda do bispo da Beira, D. Sebastião de Resende, que pretendia um edifício puro, não historicista. Da mesma época são ainda as casas para funcionários da autarquia (1960) e para Juízes (1961). No seu estudo sobre Arquitectura Moderna em Moçambique (Coimbra : FCT/UC, 1998), António Albuquerque nota que apesar de Bernardino Ramalhete pertencer à mesma geração dos autores da Estação dos Caminhos de Ferro, não pode ser considerado, à semelhança destes, “como um homem do congresso” de 1948, diplomando-se mais tarde e por isso “situando-se próximo do revisionismo crítico do Team X”, do neo-brutalismo inglês e do neoliberty italiano. Por sua vez o arquitecto mantém-se fiel aos pioneiros modernos, salientando Mies van der Rohe, Le Corbusier e Walter Gropius enquanto mentores. Entre a sua produção na Beira, levantada por Albuquerque, encontram-se os edifícios Maria Fernandes (herdeiros José Piedade Fernandes, 1966), Piri-piri (1967), Lopes Duarte (1968), o hotel na Ponta da Gêa (1969), as casas Francisco Branco (1968) e José Marim (1970), e a Associação Muçulmana (1971). Fora da cidade situa-se a sede de Governo de Chimoio e a extraordinária biblioteca municipal de Quelimane, resultado de um concurso público feito em dez dias (c. 1968). Bernardino Ramalhete salienta ainda os projectos para fins industriais desenhados na região para a Textáfrica (escritórios, 1963), Sena Sugar e a central hidroeléctrica do Revuè, iniciada com Melo Sampaio e terminada no GAUD (Chicamba Real, 1970). Acrescentam-se outros projectos como o bairro social D. Sebastião de Resende e quatro moradias em banda para investimento, ambos na Beira (c. 1967) – e já durante a vigência do escritório –, o parque Soares Perdigão e o restaurante na Manga (1970), recorrendo a uma formalização inspirada na construção africana. Importante é o prédio Moçambique, na actual do Av. Bagamoyo, com zona comercial no térreo e hotel nos pisos superiores (inicialmente habitação, 1966-67), cujo projecto de estabilidade se deve ao engenheiro Moreno Ferreira.
     O jovem sócio de Bernardino Ramalhete, Eduardo Naia Marques, nasce em 1935 em Lourenço Marques. A família encontra-se em África desde 1892. Acompanha o pai, então fiscal de caça, em expedições que acabam por lhe incutir um domínio profundo da paisagem moçambicana. Em 1955, ingressa na ESBAP, transferindo-se depois para Lisboa onde termina o curso de arquitectura em 1960. Apresenta uma estação emissora de rádio como tese final. Ao contrário de Ramalhete, Naia Marques não tem experiência profissional relevante na metrópole (para lá de alguns pavilhões de exposições encomendados pelo Fundo de Fomento de Exportação, dando apoio a  Roberto Araújo, e do estágio com Cassiano Branco em 1960). A sua actividade profissional reparte-se em duas etapas. Arranca em Moçambique, em 1962, quando cumpre o serviço militar e vê atendido o seu pedido para servir na Beira. Como avençado dos Serviços de Infra-estruturas da Força Aérea realiza, então, projectos para as bases da Beira e Nacala e alguns aquartelamentos do Batalhão de Engenharia da província. A sua carreira prossegue depois de 1975, prolongando-se até à actualidade, quando deixa o território moçambicano. Instala-se então em Durban, na África do Sul, juntando-se como senior architect à firma Franklin, Garland and Gibson, cujos sócios são admiradores do trabalho desenvolvido pelo GAUD no período colonial, o que demonstra a relevância local deste escritório nesta região do continente africano. Três anos depois opta por se fixar em Portugal.
     Desde o início, Naia Marques decide-se pela profissão liberal, que começa em 1964. Logo no ano seguinte desenvolve peças de mobiliário e desenha a piscina olímpica e infra-estruturas sociais para o Clube Ferroviário de Gondola em parceria com o arquitecto Julião Azevedo. A sua maturidade profissional consolida-se definitivamente no GAUD. Genericamente são-lhe atribuídos os projectos de interiores de lojas, restaurantes, bares, discotecas, snacks-bar, supermercados e instalações bancárias (que Ramalhete também assina). As últimas representam uma parte importante da encomenda do escritório, com agências desenhadas para os bancos Crédito Comercial e Industrial, Pinto e Sotto Mayor, Rhodes Bank ou Instituto de Crédito de Moçambique.
     Albuquerque, todavia, identifica outro tipo de programas realizados por Naia Marques na Beira, destacando o edifício habitacional na Ponta Gêa (1966), a sua residência (1969) e o mini-golfe e restaurante do Lions Clube (1973). Distingue este último, como “um dos equipamentos mais interessantes que projectou na cidade” onde “mais uma vez está presente o seu gosto pela expressividade dos materiais e o cuidado com que estrutura o espaço interior”. Sem abdicar da expressão própria, Naia Marques reconhece três influências importantes na definição da sua obra: Frank Lloyd Wright, o movimento metabolista japonês e a produção do atelier lisboeta de Francisco Conceição Silva. Acrescenta-se ainda a sua residência de férias em Manica, construída sobre um maciço de pedra e estruturada em torno da lareira.
     No GAUD, os projectos distribuem-se entre os dois sócios, mas também existem trabalhos partilhados. Na casa António Valdoeiros (Beira, 1972), Naia Marques decide a organização funcional da planta, enquanto Ramalhete é responsável pela volumetria. E no cinema Moçambique, em Nampula, do empresário Adam Awad Abá, o último traça a arquitectura, devendo-se a Naia Marques e a José Pacheco os interiores. A integração de obras artísticas é outro dos princípios modernos seguidos. António Quadros executa algumas peças para o GAUD, caso do painel para a agência do Commercial Bank of Malawi no Limbe (1970), cujo episódio de inauguração é contado por Naia Marques no seu livro de crónicas O que África me ensinou, de 2009. José Pádua é outro dos artistas que colabora com o GAUD neste período com a elaboração de painéis.
     Ao cessar a actividade o GAUD mantém um acervo de obras públicas e privadas, entre projectos e concretizações, que se espalham principalmente a norte da Beira: Quelimane, Vila Pery, Vila Manica, Nampula, Nova Freixo, Vila Cabral, Tete, Porto Amélia. Esta concentração geográfica resulta do “acordo” realizado com os profissionais fixados em Lourenço Marques, “liderado” por João José Tinoco, que origina a divisão do território moçambicano. Os dois principais grupos podem assim partilhar os principais investidores coloniais, caso do grupo Entreposto.
     Os técnicos do GAUD percorrem as distâncias que separam as diversas cidades do norte de Moçambique, fretando aviões Cessna  que, por exemplo, Naia Marques aprende a pilotar no Aeroclube da Beira. Os projectos abrangem quase todos os programas, desde empreendimentos turísticos, equipamentos escolares e culturais, clubes, blocos habitacionais e estruturas industriais. Em Angola projectam a fábrica têxtil Textang II (Cazenga) cujo projecto será reproduzido em Nampula. Bernardino Ramalhete confirma a ideia generalizada de que nas colónias “não havia oposição à liberdade de expressão dos arquitectos”. Os projectos de tribunais (Beira) e as penitenciárias de alta segurança (Vila Pery e Nampula), não construídos, estão entre os mais exigentes. Por solicitação governamental, cumpre nos anos de 1970 uma viagem de estudo a Inglaterra, Holanda e Portugal, que permite familiarizar-se com os princípios da UNESCO para edifícios prisionais. Acções como esta confirmam uma “vontade enorme em cumprir o programa e simultaneamente servir muitos clientes”, como descreve, reconhecendo também que nos dois anos que antecedem a Revolução se vive em “azáfama” permanente. Consequentemente debate-se pouco a linguagem arquitectónica e coloca-se todo o empenhamento na acção. Questões como uma resposta climática específica revelam-se fundamentais. Entre os engenheiros que fazem estudos de estabilidade e de sistemas de ventilação para o GAUD estão Marques da Silva e Carlos Pinhal.
     Depois da Revolução, a vinda para Portugal representa para Bernardino Ramalhete a reentrada na administração local, sendo contratado pela Câmara Municipal de Lisboa. Em Outubro de 1975, assume a direcção das Operações SAAL Algarve e após a extinção destas, colabora no Fundo de Fomento à Habitação. Após passagem por outras autarquias (Cascais, Sesimbra, Montijo, Almada) refaz o escritório GAUDE, Ldª onde continua a trabalhar. Em 2005 escreve o manifesto “Isto é Arquitectura!” onde afirma: “Devemos fazer [...] obra reflectindo os autênticos valores da […] contemporaneidade.” Naia Marques, por seu turno, ingressa no Fomento – Sociedade de Empreendimentos SARL, entre 1978 e 1986, quando passa à actividade liberal. É no âmbito desta empresa que projecta o edifício de escritórios na Av. José Malhoa, em Lisboa. Na mesma época, desenha a fábrica têxtil Texmanta, na Pemba. Entre 1978 e 1980 abre escritório com Azevedo e João José Malato, antigos arquitectos em Moçambique. Estabelece-se depois em Cascais. A sua experiência no desenho de dependências bancárias continua a ser solicitada em novos trabalhos para Portugal, França e Luxemburgo. Prossegue com projectos para África e visita frequentemente a Beira.|

 


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