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Este texto, resposta ao convite que nos foi dirigido após a nossa visita à Bienal de Veneza, é fruto de uma viagem por aquela cidade, que decorreu entre 24 de Agosto e 2 de Setembro de 2010. Viagem em que a Bienal constituiu apenas parte1, sendo a sua experiência naturalmente indissociável da vivência da cidade, do seu magnífico condicionamento, onde a preponderância do espaço público secundariza o edifício-objecto. Vivência que quisemos revisitar, dez anos depois de lá termos vivido, altura em que, contagiados pelo entusiasmo de Bernardo Secchi, começámos a (per)seguir a obra de Kazuyo Sejima.2

Relato
A tarefa de relatar, ou escrever, é uma tarefa de recordar. Recordar, descrever, é pensar e não só detalhar, descrever é uma análise e uma redução que torna mais inteligível e claro o que se transmite mas é, definitivamente, uma redução, uma reflexão e por isso uma memória parcial, mas não imparcial, de um acontecimento.
     A descrição relaciona o olhar e a memória; é o modo, real, através do qual o olhar e a memória discursam; é a atribuição de valores a objectos e lugares que são identificados, delimitados, nomeados e classificados. A narração relaciona a troca, é a atribuição dos objectos, dos lugares e dos seus valores a indivíduos e grupos sociais dos quais é reconhecida a identidade. Descrição e narração são ambas actividades altamente selectivas: o olhar e a memória escolhem.3
     A Bienal é um imenso caldeirão de estímulos a que reagimos com entusiasmo no início, o qual decresce lentamente à medida que o tempo (cronológico e meteorológico) decorre, a par da nossa desconfiança.
     A dispersão/concentração da informação é tal que o primeiro sentimento é: a Bienal cansa! O efeito show off era esperado, o bombardeamento de informação inevitável, e, por isso, o corpo começa, naturalmente, a reagir defensivamente e, instintivamente, recusámos, à partida, alguma informação/arquitectos/projectos que sabemos, ou julgámos saber, não nos interessar para o nosso percurso, para a construção da nossa ideia de arquitectura.
     Depois do terceiro prodígio o observador cansou-se e, exigindo acima de tudo acontecimentos diferentes dos anteriores, e cheio de curiosidade, dirigiu--se para o canto de onde se poderia ver aquilo que a mediocridade fazia. Entretanto, no outro lado, os prodígios continuaram até ao momento em que, desolados por ninguém estar ali para os ver, pararam, desistindo de vez.4
     Surpreendentemente, ou nem tanto, nas escolhas de Sejima a quantidade das nossas recusas não foi significativa; o dosear da concentração/evasão, a sequência e os dispositivos criados pelos seus convidados garantiram o conforto do corpo. E perguntámo-nos: até que ponto o projecto de curadoria da Bienal segue a mesma metodologia, o mesmo processo de construção de premissas dos seus projectos de arquitectura? A nossa identificação com a mostra reflecte a nossa identificação com os pressupostos das suas obras?

Sejima expõe-se
A partir do tema central People Meet in Architecture, Sejima afirma o desejo de centrar a mostra na ideia de encontrar a arquitectura, reconsiderar a sua potencialidade na sociedade contemporânea, e lança o repto aos seus convidados, e visitantes, de tomarem consciência das várias ideias que emanam de diversos contextos, que reflectem em si o potencial encapsulado para o futuro, esperando que a exposição seja uma experiência de possibilidades arquitectónicas, abrangendo arquitecturas decorrentes de diversas aproximações capazes de expressar novos modos de vida.
     A Bienal de Arquitectura de Veneza 2010 é claramente a Bienal de Kazuyo Sejima5. Expõe claramente a sua actual visão da arquitectura, não se centrando em escolhas de conveniência.
     Entendida a mostra como uma auto-exposição (vincada até pela, exagerada, presença de projectos seus), o processo de selecção e sequência de espaços/personagens, fez-nos lembrar o protagonista do filme High Fidelity6 (Rob Gordon, representado por John Cusack), em que este se questionava sobre a forma ideal de organizar a sua discografia: as básicas (alfabética, cronológica), tipológica (por géneros) ou, mais ambiciosa, autobiográfica. Opções que nos lembram também as conferências “O que Aprendi com a Arquitectura”7 de Álvaro Siza e Eduardo Souto Moura, onde cada um, a partir de diferentes estratégias/mecânicas, expôs a sua rede de referências no mundo da arquitectura. O carácter da exposição de Sejima (selecção/espaço/sequência), dificilmente catalogável, ambíguo, não linear, possivelmente complexo e (des)hierarquizado lembra-nos tanto a célebre enciclopédia chinesa descrita por Jorge Luís Borges8 como as premissas a gerir num processo de projecto...
Identificamos e revemos, na proposta de Sejima, as palavras de Manuel Botelho:

Acredito que muito mais do que nas análises de classificação tipológica muitas vezes superficiais ou nas análises geométricas da arquitectura, que o importante é saber descobrir as disponibilidades de diálogo que existem ou existiram nas cidades e nas arquitecturas entre o construído e a sociedade.9

Sobre a diversidade da sua selecção, Sejima não criou grupos ou organizou temas de uma forma clara ou facilmente perceptível. Numa aparente sequência aleatória, faz coabitar e coloca em relação temas à partida antagónicos e inconciliáveis. O mecanismo de montagem da exposição é comparável à intervenção mínima que Sejima e Nishizawa propõem para o centro histórico de Salerno, em que identificam e gerem “apenas” a sequência dos espaços, que, quase intocados, ganham significado, pela construção de uma narrativa, pela releitura proposta, induzida ou “roubada” aos participantes/moradores/turistas.
     A exposição desafia, a sua organização obriga à construção de sentido por parte de cada visitante e as nossas recusas ganham quase tanta importância quanto as nossas adesões. Aparentemente, não nos podemos permitir a não procurar significados: a sequência das salas não é neutra, induz reacções, escolhas, identificações, variações no ritmo de percurso. Quando, por exemplo, a instalação do Studio Mumbai Architects se encontra imediatamente a seguir à dos arquitectos R&Sie(n), o confronto radical entre as duas opções expositivas/projectuais que eles representam, implicam desde logo uma tomada de posição, o próprio mecanismo de confronto obriga-nos a decidir; o discurso da exposição constrói-se, principalmente, nas opções, nas recusas, adesões e indecisões de cada visitante.

Expor arquitectura
Uma exposição de arquitectura é um conceito provocatório, dado que é impossível transportar para a exposição os edifícios propriamente ditos, devendo ser substituídos por modelos, desenhos e outros objectos. Enquanto arquitecta, retenho que é dever da nossa profissão utilizar o “espaço” como meio de formular os nossos pensamentos. A cada participante é atribuído um espaço e age como curador de si mesmo. [...] Cada espaço expositivo é um novo sítio em si mesmo e cada participante cria um novo projecto dentro de um contexto único. Todos os participantes deverão traduzir a sua compreensão e resposta ao tema [People Meet in Architecture], revelando a sua própria posição através da mediação do lugar. Assim, a atmosfera da exposição é gerada não de uma única orientação, mas de uma pluralidade de pontos de vista. É o cenário no qual o indivíduo se relaciona com a arquitectura, a arquitectura se relaciona com o indivíduo e o indivíduo se relaciona consigo e com o outro.10

Esta atitude projectual, em que a identidade clara das suas formas e (i)materialidades não nega, pelo contrário, incita ao diálogo com as diversas condições contextuais, transparece de forma clara no modo como “encomenda” as instalações aos seus convidados (arquitectos, engenheiros e artistas), transformando a dificuldade em oportunidade, convidando a entender o acto de apropriação de cada sala como forma de transmitir, com clareza, a sua ideia de arquitectura. Cada espaço, mais do que uma representação da obra, seria a obra em si mesma.
     Deste ponto de vista, a parte da mostra presente no Arsenale (onde as dimensões, texturas e materiais dos espaços são mais diversificados e expressivos) resulta mais interessante do que a parte instalada no Palazzo delle Esposizioni, constituído essencialmente por salas brancas de diferentes dimensões. Facto confirmado também nos prémios atribuídos pelo júri da Bienal (todas as participações premiadas e três menções honrosas pertenciam ao núcleo do Arsenale: Reino do Bahrain, melhor participação nacional com Reclaim; Junya Ishigami, melhor participação individual com Architecture as Air: Study for Château la Coste; OFFICE Kersten Geers David Van Severen Bas Princen, melhor participação jovem promessa com 7 Rooms 21 Perspectives;e as menções honrosas Amateur Architecture Studio com Decay of a Dome; Studio Mumbai com Work Place; e Piet Oudolf com Il Giardino delle Vergini).
     Dos participantes que responderam ao “caderno de encargos” de Sejima, que incitava ao uso do espaço “como meio de formular os nossos [seus] pensamentos”, entusiasmou-nos, pela ordem de visita, a expressão espacial potente e sedutora da intervenção Balancing Act de Antón García-Abril & Ensamble Studio (o dispositivo cénico, no entanto, não resiste à inverosimilhança da sua materialidade – o “toc toc” inevitável das vigas ocas), incluindo ainda a piada longa, arquitectónica e ruminante da Casa Trufa e a filmagem dos vários jogos de Espanha no Mundial de Futebol na Casa Hemeroscopium; a atmosfera manipulada “apenas” por condicionamento ”avac”, em Cloudscape de Transsolar & Tetsuo Kondo Architects, desenha uma nuvem, etérea mas definitivamente física, oferecendo três níveis de conforto atmosférico, experienciados ao longo de uma rampa em espiral; Junya Ishigami, com Architecture as Air: Study for Château la Coste,propõe a definição de um volume de ar (14 x 4 x 4 m), no limite da (in)visibilidade, através de finíssimos tubos de carbono que, dada a sua reduzida espessura e imensa ambição, acabaram por colapsar (um gato foi descoberto, nas fitas de vigilância, a explorar o espaço e, neste caso, a curiosidade não lhe fez mal a ele...), o que permitiu aos visitantes ver uma estranha e lenta dança, de um grupo que, manuseando objectos invisíveis (fios da espessura de cabelos e tubos com metros de comprimento e milímetros de diâmetro), cumpriam uma performance concentrada e coreografada de mímica/reconstrução que ninguém percebia até ler o manuscrito aviso “I’m sorry it’s broken”; a lúdica e refrescante instalação com água e luzes estroboscópicas Your Split Second House de Olafur Eliasson, onde, numa sala completamente às escuras e com um conjunto de mangueiras, com uma movimentação errática, libertam água que deixam rastos, fragmentos de linhas congelados pela luz intermitente, o ambiente é completado pelo barulho da água a cair e pela casual performance de um grupo de crianças que não resistiram a atravessar a dita Split Second House, enquanto os adultos observavam de fora; em Decay of a Dome, os chineses Amateur Architecture Studio propõem uma cúpula que ocupa toda a sala e que, dada a sua construção, pressupõe a sua progressiva decadência e suposta autodesmantelação no final da Bienal; a instalação sonora de Janet Cardiff, Forty Part Motet, desenha o espaço dispondo 40 colunas ao longo da sala, definindo, a quem se presta a permanecer o tempo suficiente no interior deste turbilhão de vozes, uma diversidade de sensações espaciais apenas através do som; e, ainda neste capítulo das apropriações/representações espaciais, os subtis jardins propostos por Piet Oudolf, Il Giardino delle Vergini, que construiu um ambiente complexo e até selvagem, não o sendo porque a natureza “virgem” nunca é tão bonita; a participação dos Países Nórdicos, não se integrando neste capítulo – da utilização do espaço como meio/conteúdo – deixou-nos um sentimento de desperdício, pela falta de coragem de se limitarem a permitir ao visitante usufruir das qualidades do espaço desenhado por Sverre Fehn, resumindo-se esta possibilidade à instalação, numa pequena área, de um confortável pouf. Que melhor resposta ao tema da Bienal do que pura e simplesmente deixar os visitantes desfrutar da arquitectura e esta accionar os seus mecanismos de condensador social? A representação alemã tentou aproximar-se desta estratégia.
     O filme constituiu, também, uma ferramenta proposta por Sejima para que os arquitectos estudassem as suas próprias obras na tentativa de indagar o modo como o indivíduo, no interior do espaço, é, em si, o artífice desse mesmo espaço.
     A mostra no Arsenale começa exactamente com o If Buildings Could Talk, o filme 3D de Wim Wenders sobre o Rolex Learning Center desenhado por Sejima e Nishizawa, filme que nos parece ser uma aproximação do que seria percorrer e viver aqueles espaços. Não deixa, no entanto, de ficar um travo desconfortável pelo idílico ambiente onde todos os habitantes são jovens, elegantes e bonitos, todos têm computadores Mac, e a voz do edifício – porque ela existe no filme – para além de soar a jogo de ioga da Wii, fez-nos pensar que se os edifícios falassem diriam coisas mais interessantes; também, tendo como objecto o conjunto de projectos do SANAA para as ilhas Inujima e Teshima no Japão, o filme de Fiona Tan, Cloud Island I, faz um travelling aéreo sobre as ilhas onde vamos descobrindo os pequenos objectos que se salientam subtilmente da paisagem – o filme complementa uma maque-ta imensa das duas ilhas (com todas as suas construções, propostas e preexistentes) que ocupa toda uma sala do Palazzo delle Esposizioni.
     Utilizando também esta ferramenta para representar arquitectura, os comissários da representação portuguesa convidaram quatro artistas (Filipa César, Julião Sarmento, João Salavisa e João Onofre) para mostrar quatro casas (de Álvaro Siza, João Luís Carrilho da Graça, Manuel e Francisco Aires Mateus e Ricardo Bak Gordon). A diversidade está patente tanto nas obras escolhidas quanto nas perspectivas propostas pelos filmes, onde o espaço arquitectónico constitui tema central ou apenas pretexto para o seu próprio argumento: Filipa César propõe, num só plano-sequência uma promenade architecturale, definida com Álvaro Siza, ao longo de todo o bairro, percorrendo espaços exteriores e interiores num tempo curto, e em simultâneo evoca, no final, através de uma fotografia de uma manifestação do SAAL – registada no local onde a promenade se inicia – complementada pela voz off de Alexandre Alves Costa, um processo de um tempo longo. João Onofre constrói o seu filme à volta da condição enclausurada da casa de Bak Gordon (construída num lote interior de um quarteirão), alheando-se desta a maior parte do tempo, prestando antes atenção à bizarra performance de içar um veleiro sobre prédios de quatro andares até o pousar delicadamente na piscina localizada num dos pátios da casa, dando forma à expressão que também caracteriza o projecto, de “meter o Rossio na Rua da Betesga”; João Salavisa filma um argumento, do nascer ao pôr-do-sol, onde a casa da Comporta dos irmãos Aires Mateus é, momentaneamente, fundo bidimensional da história de uma busca infrutífera de um residente pela sua família, que nessa busca, por terra e mar, nos dá a conhecer, de forma mais ou menos casual, o contexto e a história dos processos de construção tradicionais das casas da região; Julião Sarmento filma durante 40 minutos as deambulações de três raparigas pela casa desenhada por Carrilho da Graça (duração que ultrapassa claramente o limite operativo nesta exposição) – a câmara, tão focada nas protagonistas, torna a casa mero acessório anónimo e bidimensional no qual se recortam os corpos. A participação portuguesa é complementada com os meios tradicionais de representação da arquitectura, desenhos, fotos e maquetas, numa montagem de exposição sóbria, mínima e eficaz, desenhada pelo Atelier do Corvo.
     Os meios de representação tradicionais da arquitectura continuam, obviamente, a ser utilizados, e, em alguns casos, a sua utilização revelou--se particularmente criativa, como é o caso das maquetas/instalações do Pezo von Ellrichshausen Architects, que no mesmo espaço fizeram conviver a maqueta de betão de duas das suas casas e fotos de grande formato da paisagem onde estas se inserem, podendo-se intuir um discurso (ambíguo) sobre a relação entre objecto e contexto; do evento colateral Architetture Quotidiane: Hong Kong a Venezia encontramos o mesmo dispositivo maqueta foto, desta vez em versão liliputiana; da participação dos Aires Mateus, Voids, que de forma clara (branco no preto) e coerente utilizam o mesmo dispositivo de cheio-vazio para conformarem a sala através de quatro massas e para, nessas massas, moldarem representações – positivo e negativo – de cada casa, afirmando intrinsecamente a defesa do valor do espaço em si mesmo; ou, por fim, da representação japonesa, na qual Ryue Nishizawa e Yoshiharu Tsukamoto expõem duas casas através de enormes maquetas com todos os pormenores, plantas, móveis, pantufas e até a maqueta da maqueta sobre uma das mesas.
     Num registo diferente, viciante, o Atelier Bow-Wow em House Behaviorology, expõe todas as suas casas recorrendo a hiper-detalhadas(os) maquetas seccionadas e cortes construtivos perspectivados à escala 1/20, conseguindo uma representação condensada dos seus projectos com muitos níveis de interpretação (construtivos, estruturais, materiais, mobiliário, iluminação, etc), uma representação do espaço em si mesmo.
     Um outro tipo de exposição que se disseminou pela Bienal foi aquela a que chamamos de “take-away”, na qual o meio de exposição é pura e simplesmente o catálogo. Exemplos dessas exposições, que incitam o nosso espírito de recolectores/coleccionadores, são as representações nacionais da Irlanda, Croácia, Israel, Reino do Bahrain e a participação do OMA. A Irlanda, com uma exposição numa igreja perto da Piazza San Marco, apresenta um catálogo exemplar do trabalho de arquivo de arquitectura sobre o espólio dos arquitectos Blacam and Meagher, subdividido em vários volumes de desenhos, desenhos construtivos, fotografias actuais, fotografias de época, e textos que analisam a obra; a Croácia, dado o seu azar (o pavilhão flutuante, espécie de nuvem metálica constituída por múltiplas camadas de redes metálicas com um percurso interior, que era suposto acostar no Arsenale no dia de inauguração, sofreu danos estruturais na sua viagem marítima entre a Croácia e Veneza e nunca chegou ao seu destino), ficou reduzida ao catálogo em que apresenta o processo de projecto e de construção, num esforço conjunto entre 14 escritórios de arquitectura e indústria marítima local; Israel apresenta um catálogo, elegantemente distribuído pela sala, sobre as especificidades das “kibbutz”, suas premissas e soluções arquitectónicas e urbanísticas; a exposição do Bahrain, Reclaim, tem como tema as transformações da costa, resultado de operações urbanísticas e alterações bioclimáticas, económicas e sociais, que levaram a um progressivo afastamento dos habitantes em relação ao mar. O catálogo documenta essas alterações, faz o levantamento das várias estruturas/cabanas abandonadas ou em progressivo abandono que constituem(iam) construções de pescadores ou populações costeiras apenas dedicadas ao lazer/fruição dessa proximidade com o mar, sendo que, para o espaço da exposição foram transladadas três dessas estruturas onde os visitantes podem ler o catálogo ou simplesmente fazer uma pausa na visita; a participação do OMA na exposição People Meet in Architecture, é organizada em duas zonas sendo que a mais concorrida e performática é a que dispõe todos os projectos do OMA que, de alguma forma, lidam com o tema preservação, em postais de “peel off”, ordenados cronologicamente desde 1969 até 2010, o que levou toda a gente a comportar-se como um fanático-obsessivo coleccionador.

Conceitos – reacção/proposta para a contemporaneidade
O tema da Bienal proposto por Kazuyo Sejima, People Meet in Architecture, é suficientemente abrangente e ambíguo para abarcar um sem número de apropriações ou reformulações e foi interessante encontrar recorrências/insistências em alguns temas e, pelo contrário, observar a ausência ou irrelevância de outros. Notamos, por exemplo, a ausência de certo star-system mais “festivo” que foi substituído por uma nova geração (entre os 40 e 50 anos) de arquitectos mais contidos, neutros, lacónicos ou até anónimos na sua formalização arquitectónica e, muito no espírito do tempo, mais pragmáticos e “mínimos” no investimento económico exigido para a realização das suas propostas. Outra ausência notada, ou pelo menos com uma presença não muito evidente é a da ecologia/sustentabilidade; o tema é obrigatório em qualquer projecto que se faça na contemporaneidade pelo que é com naturalidade que assistimos à sua diluição nos temas mais essenciais de projecto. A excepção é a mostra Rethinking Happiness deAldo Cibic, na qual, através de grandes maquetas à escala 1/100, propõe quatro modelos ideais de urbanismo menos urbano e mais sustentável para quatro territórios rurais específicos com diferentes premissas e comunidades.
     Os temas mais recorrentes nas várias exposições propunham duas espécies de retornos que recusavam a efervescente superficialidade da novidade: o retorno à referência dos clássicos e o retorno às origens da disciplina.
     Foi com prazer que, dentro das escolhas de Sejima, encontramos uma sala dedicada a Lina Bo Bardi e a vários dos seus projectos, com especial relevo para o SESC Pompeia, sobre os quais foram reunidos desenhos, esquissos e maqueta que informam com clareza o processamento dos seus projectos de arquitectura em função da vida, aspirações e necessidades de uma comunidade – o tema da Bienal parece ter sido, em todos os sentidos, feito à sua medida; ainda no Palazzo delle Esposizioni, achámos particularmente estimulante a revisita de Tom Sachs à obra, ícones e legado modernista de Le Corbusier que, através de maquetas (a peça Mcbusier, onde põe lado a lado duas arquitecturas drive-in – a Villa Savoye e um mcdrive – é deliciosa), desenhos (o alçado rigoroso e naïf da Unité d’habitation com o pormenor do número de mortes por queda do edifício – pelos vistos a arquitectura mata) e cópias transviadas (um “Modulor” coabita com uma seringa de esteróides) faz uma análise crítica, corrosiva e divertida da obra deste clássico; a participação nacional britânica propõe, na sua Villa Frankenstein, uma visão sobre Veneza tendo como mediador os cadernos de viagem de Ruskin, numa disposição e informação clássicas, exigentes e densas.
     De volta ao Arsenale encontrámos a proposta de Berger&Berger, Ça Va (a Prefabricated Movie Theater), cujo interesse, muito mais do que a construção do auditório em si, reside na programação dos filmes que lá são projectados. Assim, no dia em que visitámos e dos que nos foi possível ver (a sucessão de filmes era muito apetecível mas o tempo não era infinito) destacámos os documentários sobre a arquitectura do III Reich e as ruínas que agora sobram dela e sobre o pavilhão dos EUA na Expo 67 de Montreal, projectado por Buckminster Fuller. Ainda no Arsenale e sobre este tema, temos de referir a instalação de Hans Ulrich Obrist que se propôs entrevistar todos os participantes individuais aos quais fazia, entre outras coisas, recorrentemente, as mesmas duas perguntas: qual foi a epifania, se é que houve alguma, que o levou a escolher a arquitectura? e quais as suas referências, que heróis, que arquitectos mais o influenciaram? As entrevistas são, na generalidade, muito reveladoras; duram em média cinco minutos e podem ser visionadas na internet. Das muitas que visionámos, Álvaro Siza é dos poucos autores vivos que os arquitectos, e não poucas vezes, se arriscam a referenciar.
     O outro retorno, às origens da disciplina, é entendido não só em termos de ferramentas como de uma certa essencialidade e pragmatismo na abordagem ao projecto e obras. Tal como na mostra do Atelier Bow-Wow, muito clara quanto à potencialidade do uso dessas ferramentas primordiais do arquitecto, garante de abstracção, de generalização e espaço de investigação, a participação nacional húngara dedicou toda a sua exposição à questão do desenho de arquitectura (tema suscitado pela experiência pessoal de um dos curadores, no silêncio e momento mágico que sentiu quando Siza lhe fazia um esquisso no final de uma conferência), numa montagem muito atractiva que reunia o efeito cénico de uma cortina de milhares de lápis, os desenhos produzidos por dezenas de arquitectos convidados e os filmes que documentam a produção desses mesmos desenhos.
     Numa espécie de versão pedagógica da instalação dos Aires Mateus, a participação da Macedónia, Learning Architecture, consiste na convivência/confronto entre espaço positivo e negativo e na redução da arquitectura a essa sua componente essencial, a de moldar o espaço, formalizada numa imensa maqueta, que agregava dezenas de pares positivo/negativo, resultado de um ano de trabalho dos alunos do primeiro ano da Faculdade de Arquitectura de Skopje.
     Por fim, a mostra que, de longe, mais nos entusiasmou foi a participação do colectivo indiano Studio Mumbai, Work Place. Estes propuseram a trasladação do seu ambiente de trabalho para uma sala do Arsenale; assim, quando entrámos na sala, deparámo-nos com uma miríade de amostras, experiências e encaixes de madeira, pigmentos para argamassas, provetes de cores em pavimentos e rebocos, maquetas gerais, de estrutura ou parciais, modelos 1/1 de janelas, portas ou rufos de cobertura, cadeiras, mesas, móveis, moldes para cofragem, vídeos com os processos de fabrico, etc. Este ambiente encantatório de oficina, da imersão do desenho ou prática da arquitectura nos objectos, na materialidade, da indefinição onde acaba o projecto e começa a obra, na ambiguidade sobre quem constrói e quem projecta; essa visão, muito táctil e sensível, do que é a disciplina obriga-nos a reflectir e, através dos fragmentos expostos, tentar perceber de que espaços é feito aquele conforto e tentar construir a percepção inteira e visual daqueles projectos, descodificação que só se clarificava quando se folheavam os pequenos livros que continham os únicos desenhos e fotografias da exposição. Será isto uma volta ao passado, um vislumbre do futuro ou apenas as (nossas) ideais condições de trabalho?|

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1 A viagem incluiu também, por exemplo, a visita à ampliação, desenhada por David Chipperfield, do Cemitério de Veneza.

2 Bernardo Secchi participou, em 1999, no júri de um conjunto de concursos internacionais em duas fases para Salerno em que Kazuyo Sejima foi a vencedora do projecto para a Recuperação do Centro Histórico.

3 Bernardo Secchi. Un progetto per l’urbanistica. Einaudi : Torino, 1989.

4 Gonçalo M. Tavares. Breves notas sobre o medo (Enciclopédia). Relógio D’Água : Lisboa, 2007.

5 É-o de tal forma que, quando à entrada do Arsenale nos entregaram uns óculos de papel semelhantes aos da Sejima, nós, já em delírio, julgámos ser bilhete/passe da Bienal. Depois percebemos ser para visionar o filme 3D de Wim Wenders, e não conseguimos reprimir um encolher de ombros, dado o desperdício... da ideia e do material.

6 Stephen Frears. High Fidelity. USA, 2000.

7 Eduardo Souto Moura; Álvaro Siza. O que aprendi com a Arquitectura. Conferências Conferences Em Trânsito. OASRN. Nº 22 (2009).

8 “Estas ambiguidades, redundâncias e deficiências recordam as que o doutor Franz Kuhn atribui a uma certa enciclopédia chinesa que se intitula Empório Celestial de Conhecimento Benevolente; está escrito, em suas remotas páginas, que os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados; c) domesticados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães em liberdade; h) incluídos na presente classificação; i) que se agitam como loucos; j) inumeráveis; k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo; l) et caetera; m) que acabam de quebrar o vaso; n) que de longe parecem moscas.” Jorge Luís Borges. “O idioma analítico de John Wilkins”. Obras completas. Círculo de Leitores, Lisboa, 1998.
 
9 Manuel Botelho. O Corpo do Mundo. Dédalo. Porto : AEFAUP. No 3 (2007).

10 Kazuyo Sejima. Architettura: 12 Mostra: Introduzione di Kazuyo Sejima. La Biennale. [Em linha]. [Consult. 4 Nov. 2010] Disponível em http://www.labiennale.org/it/architettura/mostra/sejima/

 

 

 


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